15.8.16

encher o pensamento de calma
e desarmá-lo

14.8.16

...

não abre não abre não abre
certifica inclusive
que a chave está bem posicionada
dada as voltas
olha pela fresta
debaixo da porta
luz sombra caverna
não sabe
se se protege ou a quem protege
se se esconde ou a quem esconde
já não é medo
não abre não abre
gato mia miau
não sei quem é
não sei mais
até quem sou

tira a chave
não abre não abre
dada as voltas
tira a chave e olha
pelo buraco da fechadura
gato mia
miau
desfaz uma das voltas
miau
olha mais
bisbilhota
coloca o dedo na fechadura
sente o gelado do metal velho
gato mia não mia a língua miau
esse gato não mia nem quer que
não desfaço a outra volta

bota a chave
não pergunta
nem faz nem desfaz a volta
abandona a porta
até outra hora não volto
ao meu quarto
de Schrodinger.

13.8.16

atemporal

um milésimo de cada segundo
às vezes dois
o último ar aspirado
antes da primeira palavra pronunciada
de todo poema

é só pra ninguém
alguém

faz tempo

12.8.16

Fim de luta

como não me oponho
desde a lona vejo
sua reverência.



11.8.16

hum/or/amor

aquilo que
temos
de mais nosso
não é
nosso
se sustentará

como deus
o elo que pendura
a mágica que perdura
torto
todo e qualquer
quadro
sem moldura.

10.8.16

Ella

"[...]
Entre nós e as personagens que inventamos, que nossa fantasia lânguida consegue apesar de tudo inventar, nasce uma relação peculiar, terna e quase maternal, uma relação quente e umedecida de lágrimas, de uma intimidade carnal e sufocante. Temos raízes profundas e dolorosas em cada ser e em cada coisa do mundo, do mundo que se tornou repleto de ecos, de soluços e de sombras, ao qual somos ligados por uma devota e apaixonada piedade. Nosso risco então é naufragar num escuro lago de águas mortas e estagnadas, arrastando conosco as criaturas do nosso pensamento, deixando-as perecer conosco no abismo tépido e escuro, entre ratos mortos e flores apodrecidas. Diante das coisas que escrevemos, há um perigo na dor, assim como há um perigo na felicidade. Porque a beleza poética é uma mistura de crueldade, de soberba, de ironia, de ternura carnal, de fantasia e de memória, de clareza e de obscuridade e, se não conseguirmos obter todo esse conjunto, nosso resultado será pobre, precário, escassamente vital. 
E vejam bem, não é que se possa esperar da escrita um consolo para a tristeza. [...]"

Natalia Ginzburg

9.8.16

La materia de este mundo

"Mientras cepillo frente al espejo el pelo
sedoso de nuestra hija
veo los destellos grises del mío,
la sirvienta canosa detrás de ella. Por qué será
que justo cuando empezamos a irnos
ellas empiezan a llegar, que el pliegue en mi cuello
se hace más visible cuando los bellos huesos de sus
caderas se afilan? Cuando mi piel muestra
sus cicatrices secas, ella se abre como una flor
húmeda y precisa en la punta de un cactus;
cuando mis últimas oportunidades de concebir un hijo
se sueltan de mi cuerpo, entre ellas las fallidas,
su pequeña cartera llena de huevos, redondos y
firmes como emas, está a punto de
desabrocharse como un chasquido. A la hora de dormir,
cepillo su pelo enredado y fragante. Es una vieja
historia - la más vieja del mundo -
la historia de la sustitución."

Sharon Olds

8.8.16

La primera

"La primera pesadilla lejos de tu casa y de tu familia, tu primera noche en la academia, todo eso ha existido siempre: el sueño es que te despiertas de un sueño  profundo, te despiertas de repente sudando y aterrorizado y te sientes abrumado por la sensación imprevista de que a tu lado hay una destilación de mal absoluto en esta residencia desconocida y a oscuras, esa esencia y centro de mal está aquí mismo, en esta habitación, ahora mismo".

David Foster Wallace - La broma infinita

7.8.16

e a mão afasta
acabou
a festa anunciada fica
para daqui uns anos, tá?
como quem fecha
a porta pra sempre

o nosso amor, uma porta
anti-fogo
mas que não adianta
forçar a barra


6.8.16

Destiempos

"Recuerdo tus ojos,
esa furia rápida
con que aquellos
canarios imposibles
devoraron mis manos.

No tuve cómo retenerte.
En vano muñones
y tendones trataban
de asir tu presencia
a la materia sin tiempo,

a ese espacio este
en que devoras
el dorso de mi tacto
y en los poemas
siempre partes".

Manuel Colina

5.8.16

season #

são dois controles
um em cada casa
e uma sorte de zapping
espaço e tempo
os fazem parar
no mesmo canal
assistimos ao mesmo fim de série
mas ouvimos falar
em outra temporada.


4.8.16

sob o sol


no outro dia,
abandonou a casa e voou sobre o mar
sem mais derramar
mar.

Ellen Maria

3.8.16

Obvious child

Recitar um poema como uma prece para qual não se espera resposta.

"Existe algo que não ama o muro. Que envia ondas geladas sob ele, que esparrama os pedregulhos ao sol. Avisei meu vizinho além monte. Um dia nos encontraremos para caminhar e para erguer o muro entre nós de novo. Antes de erguer o muro, eu me perguntarei se eu estou me fechando, ou fechando o outro e a quem eu poderia ofender. Existe algo que não ama o muro e quer derrubá-lo."

(Wish I was here - dir. Zach Braff, 2014).

2.8.16

meu corpo
minha jaula
de vidro trincada
sem nenhuma
fera dentro.



1.8.16

Sem atalho

"Assusto o silêncio que me é imposto
... posto após posto posto em holocausto...
de custos e medo existo assim composto
como um suposto rosto em riste e exausto

de vagar p'las ruas como se mendigo,
de contar as luas, os sóis ao relento...
eu quero é amor, este lindo abrigo,
esta linda casa; humano sentimento...

... ajusto a tristeza num riso vasto
gasto o amor em cada flor que degusto (...)
arbusto firme sou pássaro casto
no nefasto sol padrasto e injusto...

S'a moda muda, conservo o conteúdo,
me desligo num sono profundo
enquanto renasço anjo, anjo miúdo
indo e vindo no lindo findo mundo..."

Octaviano Joba

31.7.16

Expansão da Arte

"A arte incorpora algo como liberdade no seio da não-liberdade. O fato de, por sua própria existência, desviar-se do caminho da dominação a coloca como parceira de uma promessa de felicidade, que ela, de certa maneira, expressa em meio ao desespero. mesmo nas peças de Beckett, a cortina se levanta como num cenário de Natal."

Adorno

30.7.16

insídia

não é o tempo inimigo
senão minado
de esperança míngua
a emoção sentida
o tempo não retorna
tudo é entropia
já dizia


Ellen Maria

28.7.16

já digo

quem acredita
que vivo à moda
da lua
confia que não vou
nem fico
não sou minha
nem só sua
se muito eu fujo
se pouco eu grito
depois descanso
no sétimo dia
minto
e durmo nua
você de abrigo

Ellen Maria

27.7.16

sobre pedra

comerá as cinzas
para que nada sobre
e morrerá engasgado
com a própria saliva.

26.7.16

status de relacionamento:
uma flecha invisível cai duas vezes na mesma ferida
e cicatriza milagrosamente o tendão de aquiles.

25.7.16

era

não há pé direito mais alto
joia barroca tão rara
que o céu da sua boca
impossível
por mais trabalho que eu faça
filigrana
aprenda a forjar
já não há cúpula
ou língua neste mundo
que nos faça feixe
somos descontínuos
sem altar,
subo as escadas e caibo
em meu apartamento
o efeito volta e desaparece
várias vezes só
no mês de julho.

23.7.16

Não tenho a antiga ternura

"Não tenho a antiga ternura pelo meu corpo
mas o tolero como um animal de carga
que é útil apesar de exigir muitos cuidados
e traz dor e alegria e dor e alegria
às vezes fica imóvel de tanto prazer
e às vezes serve de abrigo ao sono

conheço os seus corredores inuosos
sei por qual deles chega o cansaço
e quais tendões o riso estica
e lembro do gosto único de lágrimas
tão parecido com o de sangue

os meus pensamentos-- um bando de pássaros assustados
eles alimentam-se do campo do meu corpo
não tenho para ele a antiga ternura
mas sinto mais forte do que antes
que não alcanço nada além das minhas mãos esticadas
e nada acima daquilo ao qual me levantam as pontas dos meus pés

Halina Poswiatowska, trad: Magdalena Nowinsk

21.7.16

Cinco canções lunares

"Sobre os cotovelos a água olha o dia sobre

os cotovelos. Batem as folhas da luz
um pouco abaixo do silêncio. Quero saber
o nome de quem morre: o vestido de ar
ardendo, os pés em movimento no meio
do meu coração. O nome:
madeira que arqueja, seca desde o fundo
do seu tempo vegetal coarctado.
E, ao abrir-se toalha viva, o
nome: a beleza a voltar-se para trás, com seus
pulmões de algodão queimando.
Uma serpente de ouro abraça os quadris
negros e molhados. E a água que se debruça
olha a loucura com seu nome: indecifrável, cego."

Herberto Helder

20.7.16

Cântico XV

"Não queiras ser.
Não ambiciones.
Não marques limites ao teu caminho.
A eternidade é muito longa.
E dentro dela tu te moves, eterno.
Sê o que vem e o que vai.
Sem forma.
Sem termo.
Como uma grande luz difusa.
Filha de nenhum sol."

Cecília Meireles

19.7.16


"Abusam da palavra -sonho- em relação à minha pintura". 

René Magritte

18.7.16


"O habitante da língua não tem domicílio fixo".

Maria´José Mondzain, Homo Spectator.

17.7.16

impiedade

amanhece
me visto outra vez
com os segredos que nenhuma luz revela
olho algum tampouco confessa
o que refletiu
sob o sol, nada de novo
a mesma tela branca sobre a boca
cala as descobertas da noite
somente o espelho
julgador
em frente à cama
me encara no tempo seguinte
só ele sabe quantos desvelos
e a qualidade do sono
só ele me fala
sobre o que nunca quis
ter vivido
e me afirma escancarado
o que eu sempre soube.

16.7.16

Mudança de idade

"para explicar
os excesso do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mdança de idade.
na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantava estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
a tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores noturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer. "

Mia Couto.

15.7.16

fuck

"pienso: si yo hubiera
tenido hijos
en qué idioma les hubiera
hablado?
cuál habría reprimido?"

Sylvia Molloy. Vivir entre lenguas.

14.7.16

viro a casaca

de fora eu vejo melhor
de dentro
com os ouvidos tapados
não pesco nem mosca
passo a língua nos dentes
de boca fechada
também não entra
mais nada nessa casa vazia
cheia de lembranças mortas
eu mudo e as embaralho todas
um novo casamento
com a memória
ainda tenho as janelas abertas
tanta brisa
boa pra secar roupa
já joguei tanta coisa
mas ainda faltam
umas poucas linhas
e eu não vejo a hora


Ellen Maria

13.7.16

No,
no podés dormir así
boca abajo
sin almohada
hace mal
tu cuello sufre
la espalda grita
sentís
estos nudos son gritos
enclaustrados
dice mi masajista
y yo en su camilla
escucho/ no
los escucho
pensando en decirle
seguí seguí
pero no digo
yo también grito mudo
y me acurruco
a veces.


Ellen Maria

12.7.16

prosa mínima poesia

fazer trinta e absorver
a consciência como informação
de que coisas belas
pessoas que emocionam
e experiência estética
são raras e
pela mesma razão
devem ser furiosamente
conservadas

Ellen Maria

11.7.16

"Juntar a grandeza ou os esplendores de uma ideia no cerco burilado de uma boa combinação de letras; conseguir, não escrever como os papagaios falam, mas falar como as águias calam; ter luz e cor em uma engrenagem aprisionar o segredo da música na armadilha de prata da retórica, fazer rosas artificiais que cheiram a primavera, eis o mistério."

Rubén Darío

10.7.16

quem casa quer casa

firmar contrato novo
tem algo de gosto velho
na garganta as cordas vibram
o mesmo nome
assina
tente daqui a trinta meses
outro anúncio dizer.

Ellen Maria

9.7.16

o terror

"até cada objecto se encher de luz e ser apanhado
por todos os lados habéis, e ser ímpar,
ser escolhido,
e lampejando do ar à volta,
na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos juntos
como para escrever cada palavra:
pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja:
um copo de água,
tudo pronto para que a luz estremeça:
o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima
tão súbito e implacável na vida administrativa."

Herberto Helder in Servidões

8.7.16

[...]

"[...]
As crianças que há no mundo, vindas de lunações de objectos
potentes, fechados,
pulsando,
suspensas pela alumiação que as toma braço a braço;
que têm a despontar nas costas
um astro de basalto do seu tamanho.
Refulgem pela boca, ouvem vozes.
Devoram um alimento ardente.
Dormem.
Só é preciso pensá-las, vê-las, pô-las
à mesa com as mãos sobre a toalha, entre facas,
louça, carne
tóxica. Ousoprá-las para que divaguem numa força de ar.
Transmutavam-se.
Que transparência no sono, que ciência.
Alguém as encontrou, não falam, queimam-nas
o combustível astral, a nutrição
violenta. A sua arte monstruosa
é a atenção nos dedos:
separar pelas fendas os planetas,
torso mais torso, membros altos, o cérebro selados de todos
os mortos. Mostram
isso: que a arte que dá a vida
mata.
Ininterruptas. Assombrosas. Contempladas.
[...]".

Herberto Helder

7.7.16


"És uma faca cravada na minha vida secreta".
Herberto Helder

6.7.16

Mogli

"O dia começava a amanhecer quando Mogli desceu pela encosta da montanha, sozinho, ao encontro daquelas coisas misteriosas chamadas homens".

Rudyard Kipling

5.7.16

O lado de fora

"Eu não procuro nada em ti,
nem a mim próprio, é algo em ti
que procura algo em ti
no labirinto dos meus pensamentos.

Eu estou entre ti e ti,
a minha vida, os meus sentidos
(principalmente os meus sentidos)
toldam de sombras o teu rosto.

O meu rosto não reflecte a tua imagem
o meu silêncio não te deixa falar,
o meu corpo não deixa que se juntem
as partes dispersas de ti em mim.

Eu sou talvez
aquele que procuras,
e as minhas dúvidas a tua voz
chamando do fundo do meu coração."

Manuel António Pina

4.7.16

vida:

"Não me abati e nem senti desânimo. A vida é vida em qualquer lugar, a vida está em nós mesmos e não fora de nós. Ao meu lado há pessoas, e permanecer sempre, quaisquer que sejam os infortúnios, sem perder a coragem e cair no desânimo - eis em que consiste a vida, em que consiste seu objetivo".

Fiodor Dostoievsky. Recordações da casa dos mortos.

3.7.16

Travessia

faz um santo
milagre outra vez
não que eu acredite
que las hay las hay
mas foi um anjo de sonho quem me disse
...haverá um dia um dia
ele era um homem um homem...
e eu passei a procurar
em todos os olhos
algum brilho refletido dos meus pares
pá e areia, construção
tanto sol secando as roupas
faz todos os dias duvidar
que em outra parte do mundo
chove
e quando a noite chegou pensei
as gotas pequenas também encharcam
e meu coração inchou
de esperança
quem sabe,
quem sabe.

Ellen Maria

2.7.16

ela

"tenho visto cada vez mais nos meus pés os pés da minha mãe, suas mãos nas minhas. nos meus gestos de cortar, misturar vegetais: ela. tenho medo e me assombro. quanto do que sou sou eu e quanto do que sou é esta antiga linhagem que em mim se prolonga e atravessa? mãe, avós e uma das bisavós conheci. algumas tias, uns tios. e os que vieram antes de mim, os que mal sei? cada pedaço meu é de um outro? um quebra-cabeça que também eu preencho ou só faço recompor, agora que é minha vez, num eterno montar e desmontar reorganizando as peças? fomos sempre as mesmas peças? e em que momento a matéria orgânica enfim respira e admira as folhas que caem, o sol que nasce, a dor do outro. em que momento vira mão da mãe nos acariciando o rosto na hora da febre? desde sempre na minha mão, a mão dela, como um segredo: dentro."


v. paulics

1.7.16

corpo fechado

finca a estaca
na fechadura
e gira
pra ver se abre
se estanca
a ferida
ou se cai
finalmente
a ficha.


Ellen Maria

30.6.16

Olhos elétricos

"ponta de pedra aguda
faces rasgadas, bétulas amargas

você me diz psiu, violência
no jeito de piscar as pálpebras

pássaros tristes entre cães aprisionados
enfim vivemos num cenário

onde crianças com olhos elétricos
vasculham os bolsos de lady solidão

musas sádicas me acariciam
com unhas de gilete

lábios em carne-viva, mil beijos
de medusa - strippers que após a roupa
arrancam a própria pele

e você vira as costas, arrasta-se
como um mamute pelo corredor

arremessando um "boa noite"
que me acerta em cheio na testa."

Ademir Assunção

29.6.16

Sozinhez

"Não importa qual seja a resposta, o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira. A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: 'Estou tão cansada de estar aqui sozinha!' O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta."

Paulo Mendes Campos

28.6.16

Feminidad en la metalengua

"Los hombres (occidentales, al menos) [y las mujeres masculinizadas] no aman amar, sino vencer. Reina entre ellos el desprecio y la ironía por las cosas del cuerpo sensual: los olores, el tacto, las secreciones, las músicas; llaman 'artistas' a quienes de entre ellos se interesan. Pero los artistas son mujeres. Los hombres se sienten derrotados cuando aman. Prefieren las prostituas cuya impasibilidad les protege. El gozo de una mujer es para ellos un enigma, porque no han encontrado los medios técnicos de producirlo de modo previsible y garantizado. (...) La gran asociación viril de la guerra y el sexo esá ya en los Tratados de erótica chinos, que son igualmente Manuales de estrategia. para el hombre el amor es un combate y lo que está en juego es su virilidad, es decir la cultura."

Lyotard 

27.6.16

A resistência do impossível

não altera a ordem
dos cacos
a quantidade de lados
também é a mesma
a profundidade do corte
um ângulo parece que grita
enquanto
outro se cala
não há mais nada lá
um jarro completo
cheio de eco, um oco
o vazio de dentro
se espalha agora
pela
casa inteira.

Ellen Maria

26.6.16

tangerina

faz
da face jovem
clássica antifaz
mulher

olha no espelho
e não enxerga
nem ela
nem outra

qualquer coisa
também não é melhor
do que isso

o tempo não fez
ainda
sua foice
ou faca

mas fincará
basta
um pouco mais de calma
do lado de dentro
e fora da cáscara

miolo sempre demora
mais
para amadurecer.


Ellen Maria

25.6.16

Parte do Entropé

"o violinista do telhado
on the other hand
a secreta vida de walter mitty mais naquela partinha
que toca space oddity
as duas partes das relíquias
da morte
a caminhada solitária pra estação que nunca
mais é sem seu passo
a letra de canção que tem uma única frase lembrada
e o resto só murmúrio de voz incediada
o apito de madeira de um avô à mão
entalhada herança repassada
o livro artesanal à quatro braços costurado
biblioteca comunitária entre dois
a trilha sonora do top gun no pen drive contaminado
cavalo de troia e presente de dia dos namorados
a partida de uma e da outra o aniversário
avós compartilhadas
a queda de patins que nem rola
apoio e pernas e braços únicos em corpos distintos
o tapete de sala o chuveiro apertado as camas de cada
na carne de um o cobertor que ao outro faltava
pode ser uma lista
mas também pode ser a palma
da mão da namorada
aberta
encostada aqui na face
linha da vida escancarada
como quiromancia dissesse pra aquele
que nela inacredita
na sua cara
mas também pode ser uma ambiguidade
tipo luneta
ter ou não ter a lua
mas também pode ser rever
o filme de ficção
científica que diz
não estamos sós
e reentender o recado
tá ali o astronautinha
pendurado me lembrando.

(...)
Ricardo Escudeiro

24.6.16

11

pintar um pouco vida
de sanduíche feliz
já tão novo tão
copiando
a invenção cotidiana
por que não

se como na criação universal
um pedaço desaparece no caos

o show deve continuar e
os elefantes não param
de dançar quando
o riso é aplauso
da sobrevivência.


Ana Martins Marques

23.6.16

a última parte de HP

O primeiro é situar-se. Depende do planeta inimigo, a escolha da arma. É preciso traçar um método eficaz de sobrevivência, ainda que temporário. Todo ato surpresa acarreta uma recalculação do plano e um arsenal à postos de instrumentos mortíferos para ataque e defesa.
Às vezes não há lugar mais hostil na Terra que o terminal rodoviário.
Faço o possível para tornar-me invisível. Não é preciso ter visão raio-x ou microscópica para sentir que as milhões de bactérias e vírus, que habitam todo e qualquer elemento naquelas centenas de metros quadrados, não são o pior que posso temer. Não é preciso ter um quociente de inteligência elevado ou um poder sobrenatural para compreender que aquelas dúzias de homens parados ali querem me comer e já pensaram em coisas bem piores pra fazer que esperar um ônibus chegar para partir. O bilheteiro faz questão de tocar minha mão enquanto me entrega o ticket da passagem. Um sabre de luz cortante me caía bem. (Ou a ele). Não é cortês ou acidente, é intenção. Eu poderia matá-lo também com um simples rodopiar da minha varinha mágica. Avada Kedavra. O vendedor da padaria armada arma o teatro da gentileza em um tom que causaria inveja aos apresentadores veteranos de tv. Meu bem querer, o que você vai querer hoje? (Desaparecer). Ele olha para meus peitos enquanto me serve um pão na chapa, toca meu ombro depois de me trazer o café com leite. 38, AK-47, chumbinho ou um tiro de borracha no seu pau. Pode escolher. Todos os outros me olham e fazem seu papel de meros figurantes. Uma bomba relógio presa no meu cinto apita a contagem regressiva. Não me escondo atrás da mulher maravilha. Sou ela. (Só que não). Quase desabafo de ódio, derreto meio pão no copo americano, ponho pra dentro e fujo dali. A fila de taxistas com suas camisas celestes de botões abertos cochicham qualquer coisa que meu ouvido de tuberculoso não me permite distinguir mais que gostosa. Uma granada na garganta de cada um deles. Um desintegrador de espermas.
Meu ônibus chega. O motorista anuncia a hora e o destino, e os ansiosos se encaminham para subir e se esconder cada quem em sua caverna-poltrona. Minutos depois, o que parece ser o último passageiro sobe; o motorista recolhe minha passagem enquanto ainda reluto para entrar. Enquanto permaneço ali, ele lê atentamente e em voz alta meus dados escritos a caneta, caso haja um acidente, telefone, identidade e puxa um assunto de mas você vai viajar sozinha, linda? Um raio fulminador de cérebro e língua. Pela minha afirmativa congelante, ele sabe que não devia ter falado nada. Eu volto minha observação para a porta de saída do terminal. Ele agora sabe que estou esperando aquele homem que está vindo em minha direção. Ele se afasta para fazer alguma coisa burocrática e observar os próximos movimentos do homem que se aproxima. Três segundos. Não nos olhamos nos olhos. Nos abraçamos com força. Sou eu. Ele nem precisa dizer. Absorvo tudo o que eu posso pelo olfato, pelo tato. Pelas partes que me tocam. Barriga, braços, rosto, pedaços de pernas. Minha pedra filosofal. Três segundos de antídoto. De derretimento da armadura para a fabricação do mais sublime afeto. Não falamos mesmo nada. Era só isso. Me despeço entrando no ônibus sem olhar para trás. O motorista liga o motor, parte e pronto. Volto a ser a heroína que sempre sou. Exceto nesses três segundos de imortalidade.


Ellen Maria

22.6.16

tel.

tá certo.não estou morrendo.
e se tivesse, ligaria para outra pessoa. meu pai e mãe. que são duas pessoas.
é justamente porque não estou morrendo que estou ligando.
porque é a vida que me faz enfiar o orgulho pela goela dezenas de vezes, as palavras todas já ditas não voltam para o livro branco, mas ainda há tantas páginas a preencher. de palavras. é.
quem sabe. ligo uma, ligo duas. ninguém atende.
penso que você está vivendo também.
e no fundo sei que está certo em não atender.
é isso.
você está certo em não atender. eu estou certa em tentar.
porque no fundo ambos sabemos. de tudo. sem precisar falar nada um pro outro.
cada um na sua tentativa de viver.

Ellen Maria

21.6.16

it

acontece o susto.
falta ar
acelera coração
eriça pelos
treme mãos
bambeia pernas
dilata pupilas.
e passa.

acontece o amor.
quando passa, assusta.
quando não passa, acontece o susto outra vez.


Ellen Maria

20.6.16


há quem ama 
em silêncio
e quem faz escândalo
mês sim
mês não

19.6.16

uma flor de buquê

"A flor parece despetala
por mais bela que se apresente
falta um pedaço
o homi não soube regar
as pétalas já caíram
Culpa da sombra
desprezo egocêntrico do sol
tão preocupado em se iluminar
que rejeitou as pétalas
sorte das formigas
Cada pétala perde seu substantivo feminino
alimento do receio
gatilho do medo
medo do sol."

Daniel Bastos

18.6.16

para meio entendedor...

Foi quando você foi levantar e dizer ah...
que eu achei que era ...mor o que você ia... deixa pra lá
e também não foi ...deus,
de despedida, nem nada
nem nenhuma outra palavra
que pensei, poxa!
um bocejo a gente não diz
sem se espreguiçar junto
pra não confundir o outro
que tá esperando
esperando...
nada, não.

Ellen Maria

17.6.16

Las cebras y la muerte

"Éramos ciento cincuenta y siete cebras
corriendo por la llanura seca
y yo iba detrás del veinticuatro,
del veinticinco y del veintiséis,
delante del sesenta y del sesenta y uno,
y de pronto saltando nos adelantaron el ciento dieciocho, el ciento diecinueve
y el viento veinte diciendo "río", "río",
y el veinticinco repitió "río", "río"
y de pronto nos alcanzó el ciento treinta
y también nos adelantó saltando,
y el veinticinco giró hacia la izquierda
por delante del veinticuatro y del veintiséis,
y de pronto vi el sol en el agua del río
brillando con brillantes salpicaduras,
y el ocho y el nueve pasaron a mi lado
corriendo en dirección contraria
con la boca llena de agua y las patas
mojadas y el pecho mojado
y diciendo "adelante", "adelante"
y me crucé de pronto con el cinco y el siete
que también corrían en dirección contraria
pero diciendo "cocodrilos", "cocodrilos",
y luego pasaron el seis, el treinta y el doce
y todos dijeron a coro "cocodrilos",
y bebí agua, bebí agua brillante
de brillantes salpicaduras,
"un cocodrilo" gritó el veinticinco,
"un cocodrilo", repetí reculando
y corriendo en dirección contraria,
y me crucé de pronto con el ciento cincuenta
y el ciento cincuenta y uno,
"cocodrilos", "cocodrilos" dije
con la boca llena de agua y las patas
mojadas y el pecho mojado
y seguí corriendo por la llanura seca
detrás del ceinticuatro y del sesenta y uno,
y había de pronto un huevo
entre el veinticuatro y el veintiséis,
y de un salto de pronto ocupé el hueco.
Éramos cienta cuarenta y nueve cebras
corriendo por la llanura seca,
y delante de mí iban el doce, el trece
y el catorce, y detrás de mí
el cuarenta y tres y el cuarenta y cuatro."

Bernardo Atxaga

16.6.16

Paixão

"porque o olho tentando perfurar a imagem
porque a voz tentando perfurar o limite
porque a escuta tentando perfurar o sentido
porque a intuição tentando a lógica
porque o vazio tentando
o abismo
porque o corpo nunca
nunca
cede

então o punho
e o nada."

Geruza Zelnys

15.6.16

Lo que hay

"recibe este rostro mío, mudo, mendigo
recibe este amor que te pido
recibe lo que hay en mí que eres tú".

Alejandra Pizarnik

14.6.16

timbre

quem não deve
me chama atendo
sabendo que não devo
desculpas pra mim mesma e ela
que deve saber também
por que é que ele depois de tanto
tempo me chama tem chama que não cessa
do lado de lá do lado de cá
o vento apagou e eu ainda em tempo
cobrei juízo e desliguei na cara
dele.

Ellen Maria

13.6.16

Royal Enfield

"Si pudiéramos permanecer
en el abrazo desmedido que exige una moto
pensás mientras cruza
el asfalta un perro
como una mancha negra,
la cabeza acostada
a ver cómo suena en su espalda
la velocidad, van quedando atrás
las copas de los árboles y apretás con más fuerza
ahora que te persigue
una idea: a la sombra de esos árboles
dejarán el cuerpo de la moto
cromado que resiste la corrosión
y caminarán
cada uno aferrando a su propio casco."

Silvina Lopez Medin

12.6.16

pasado

"aunque sé que a veces me escuchan pensando que soy
el mausoleo de una generación
cuyas reivindicaiones ahogó la dureza de estas décadas
y se asombran de que aún emprenda animosa el viaje
hacia corazones y lenguajes jóvenes
siga hablando del color con que vi el mundo
y lea con más gusto a unos desconocidos que a viejos compañeros
debo decirles
aprendí hace mucho
que no hay nada más patético
que la canción del verano la canción del momento
pasado ese verano pasado ese momento."

Juana Bignozzi

11.6.16

Cavaleiros

"Kanon, o Imortal:
Espere, Milo. Eu não sei como você não se preocupa em deixar Atena a sós com um inimigo como eu.

Milo de Escorpião:
Já não existe inimigo algum aqui. Não há ninguém aqui além de um companheiro. Trata-se de Kanon de Gêmeos, ou seja, um cavaleiro de ouro."

10.6.16

Seiva veneno ou fruto


"Sólido é o vento que leva as coisas embora."
Júlia Hansen

9.6.16

gps

e eu busco outros caminhos buscando o mesmo destino
um caminho que me diga depois
você chegou ao seu destino
sem que eu tenha que recalcular a rota
cada vez que meu gps interno localizar
perigo
de duas pernas.

Ellen Maria

8.6.16

Depois de você

"Depois de você, eu vou cair de amor por alguém
duzentos ou trezentos anos mais velho. O coração dele/dela
será um buraco
no teto da igreja. Para ele/ela, cair
será como cortar o fio de um telefone e vê-lo rolar
rua abaixo. Se fizermos amor, eu tirarei
umas férias anuais
e armarei nosso prazer como quem prepara
um jogo de xadrez, e ele/ela deixará uma maçã cair
no chão
para limpar todo o horizonte.
Ele/ela logo se cansará do meu nervosismo,
do meu sangue apressado. A coisa não vai acabar bem.
Minha/meu amante cortará outro fio, e talvez você
me encontre
novamente, perambulando o toco de um século, meus olhos
abertos
como um coco partido, meu coração o último buraco que o seu laço
atravessa.

Jack Underwood
Tradução (provisória): Cide Piquet

7.6.16

Ídolos

"He buscado tantos ídolos
me he fascinado por tantos ascetas
he soñado con sus imágenes duras rechazantes
esa pureza que humilla
la conianza en el juicio de los pocos
y sigo desconociendo la puerta única
el día único
el momento único
poco los esperé y ya no lo hago
al igual que siempre debí irme me quedé
no puedo dejar de buscarlos
aun rota de cansancio
aun perdido el deslumbramiento."

Juana Bignozzi

6.6.16

recitante

"o governador voltou ao seu palácio;
e a trincheira era uma cilada,
e o pato estava depenado, assado
e o pato nunca foi comido,
e meio-dia não era mais a hora do banquete,
meio-dia era a hora da morte."

Bertolt Brecht
tradução: Manuel Bandeira

5.6.16

O reverso das pedras

me insistem na terapia
na regressão ou hipnose
- pra você descobrir o que foi que causou isso
isso chamam aquilo
que não dizem
histeria
(ou a desconfiança que nutro por todos os homens)
me culpam
& meus pais & minha infância &
todos os homens
me dizem isso
desconfiam que eu já sei a resposta
e insistem
- mas o que foi que causou isso
(reticências e não interrogação)
percebo que eles têm medo
da resposta
será que têm medo que eu aponte o dedo
para o pau deles
e cruzam as pernas
em um movimento inconsciente.

penso em alguns cães que atacam
porque sentem o cheiro do medo
e também cruzo as pernas
mas eu sei
que eles já perceberam
tudo
desconversamos
temos uma lista pronta de amenidades
falamos de prêmios literários e autoexílios
o inseto como alimento e a tecnologia do gps
caímos em poços escuros
por sorte
acendo um cigarro
com minha caixa de fósforos
são lugares comuns que sempre voltamos
porque não temos mais
nada
(seguro? em comum?)
em volta.


Ellen Maria

4.6.16

Dandelion

Não posso pegar a veia
sem treinar os olhos
sem a gema dos dedos
turvas as águas
ou as cores
do fundo?
mergulho
e às vezes nem assim
descubro
tem mistérios que são o que parecem:
mistérios.


Ellen Maria

3.6.16

Maçã mal cabida

"faz já dois candelabros que ela não olha para trás
uma mulher de olhar para trás
mas então agora é o parto chinês
os ossinhos do pato no canto perto
da mão esquerda
o garfo com seus dentes virados
para o quadro onde um cavalo e sobre ele
uma garotinha forçando o rosto num
raio de sol muito mal pintado num
tom de maçã mal cabida ali
pobre
pobre beleza pobre mal cabido ali
faz já umas três ou quatro eternidades que ela não olha para trás
metodologia de sondar sem ver
uma faca no assoalho de cupins
uma vaca bordada no guardanapo novo
uma mulher e um homem e uma roda de tortura
uma vaca bordada na cara da mulher
onde o homem maria de deus
uma propaganda de desodorante e uma cachoeira e a torradeira quebrada
uma vaca bordada na cara dela
e se ela se botasse a cantar e se
se ela botasse a querer lamber um peito marinho
e se ela se botasse
a pensar num estupro supracoreografado
uma vaca e três ou quatro búfalos que ela não
ela usa um terno cinco tamanhos maiores
faz treze luas que ela não
faz treze náuseas que ela não olha para trás
uma sala escura bordada no estofo da cadeira vazia
uma mesa tão longa que ninguém deu-se a bordar
um tipo incerto de deus que fez da incerteza da mulher
coisa bordada no quadro com a maçã sobre o rosto mal chaveado
cavalo sob menina rija sobre raio de sol fruto de fruta mal cabida ali
se ela se bota a voltar a olhar para trás
se ele se bota a pensar em sexo com talheres de azar
se ela se bota a criar uma boa superstição com taças
já uma colisão de ângulos entre a janela e o espelho que ela não olha para trás
se ela se bota a querer o tórax a devolver a coxa e a asa
se ela se bota a entortar o quadro
uma maçã e uma rigidez infantilizada e uma cor de tortura
uma carcaça bordada na cara da mulher
onde o homem maria de deus onde o homem
se ela se bota a cruzar os ossos
essa mulher que morrerá em menos de sete ou dezessete sopros na nuca
se ela se bota a entranhar os milagres ali sobre a mesa sob as unhas
se ela se bota a pentear a franja com o garfo
se ela se bota a cruzar os ossos ou os dedos ou as pernas
se ela se bora a contrair o útero se ela se bota a relaxar o útero
essa mulher que morrerá em menos de sete ou dezessete sopros na nuca
se ela se bota a contrair o útero entre o primeiro e o último sopro fatal
faz onze moscas que ela não olha para trás."


Carla Diacov

2.6.16

Partida

"Já sentiu a angústia durante o gozo, antes mesmo da última gota? O sufocamento. Como se o líquido espesso tapasse a garganta, escorresse pelo lado de dentro do peito, escorando paredes em desalinho.
Tuas mãos na minha garganta. Esse, o acolhimento. Crispadas. Busco teus olhos e os encontro envergados para o bilhete sobre o criado-mudo. Único. Teu nome do meio abreviado, como se perdido num soluço. Talvez o pouco da tua identidade que vai ficar nesse quarto.
Aos poucos o relaxamento. Conformismo. Deglutição. O ar volta a circular, carregado dos cheios de pau e boceta já solitários. Como antes, como antes de tudo, como antes do primeiro adeus. Que era o do primeiro encontro, tudo já começando por terminar. Com um cheiro de morte. Por isso os passeios no cemitério, as flores, a tua mão tapando a minha boca quando a sangria era verborrágica. Não havia tempo.
Não havia tempo.
Não houve tempo.
Há um cadeado sombrio na porta, triste. Entreaberto. Como se senhor da liberdade que ocultamos, um do outro, entre promessas vazias de encantamento. Como o desenlace do pau, um salto para trás, para o entendimento.
Tua boca sem batom. Os olhos esbugalhados, presos na passagem. O nome do meio comido. Um resto de choro que não vale mais a pena.
Já estou vestido. Acabar logo com isso. O corpo, recomposto, dentro das roupas que já me pertenciam, antes de tudo.
O aeroporto, o que é mesmo o aeroporto? O voo do que já vinha distante. Sumir no horizonte qualquer significado, os cabelos armados em um encosto de assento e não mais desalinhados no aconchego.
Um último adeus como promessa de reencontro. Nunca se sabe, retornos são tão plausíveis quanto nascimentos, e olha que nem gozei dentro, ou talvez sim, não sei ao certo porque havia algo de mim que já tinha viajado.
Depois anestesiado, alheio, errático, perdi o tíquete do estacionamento, perdi o carro no estacionamento, lembrei que queria dizer mais alguma coisa, mas já era tarde. Outro filme já devia ter começado, ou talvez estivéssemos apenas ainda dormindo, tuas mãos no meu cabelo.
Qualquer coisa de mim deu partida no carro. Alguém precisa voltar, no caso. Fingindo-se inteiro. Mas com um quê, um tanto de reconhecimento abreviado no meio.
Meu nome, agora? Algum eu, incompleto, entre o que foi e o que ficou, rodando como etiqueta de bagagem na esteira."

Edson Valente R. Maria

1.6.16

ma(i)sturvação

a mão que cai
é a mesma mão
mas depois que cai
já não é a mesma.


Ellen Maria

31.5.16

la ama de casa

"la ama de casa
no ama
la casa
que ama. a pesar
suyo
la limpia/la ordena
la habitahabilita
sobre todo:
cuando está sola
y es el momento de:

hacer pis parada como su marido, el señor y
manchar la tabla
(que después lavará)
jugar a la mucama
y ponerse un delantal
(para bajar a la verdulería y ser la reyna de las empleadas)
mirar a Cathy Fullop y
ejercitar 100% sus glúteos
(pero con el delantal puesto)
abrir el placar del señor y
probarse sus trajes
(con camisa, corbata, zapatos y bigotes incluídos)
llamar al amante a Ecuador y
tener sexo telefónico por más de una hora
(haciendo poses: 69, perrito, misionero, patitalhombro etc.)
abrir el archivo de la computadora que se llama "carta a mamá" y
anotar los datos importantes
(por si alguna vez los necesita para chantajear a su marido, si él quisiera divorciarse)
y es así
en esos momentos en donde
la ama de casa
sí ama
la casa
que ama pero que
en realidad
no ama
sobre todo:
cuando llega la gente
y es el momento de:

refregar la ropa y
en especial los slips
(que hasta ella, que perdi[o el asco por el gordo calvo, es decir por todo, le da asco)
preparar la cena y
cuidar todas las normas de higiene según lo disponde un papel en la cocina
(aunque lo haga después de los calzones)
sacarle los piojos a Marianita y
usar para eso el vinagre blanco de la ensalada
(así ella es su única amiguita cuando la dejen de lado en el colegio)
fingir amor por el perro y
obligarlo a dormir en la cuna del hijo
(pero acusarlo de no hacerle caso para que se baje)
llevar dos vasos de agua al cuarto a la noche y
aguzar los ojos para mirar a su marido, el señor, intimidantemente
(por si andaba pensando en divorciarse)

y es así
en esos momentos
donde la ama de casa
decide
aunque él no haya
pensado en divorciarse, que
ella
va a tomar:

la sartén por el mango
la taza por la asa
la olla por la manija
y
de todos modos:
chantajearlo. por estar
años y años y años
sometidamente sometida
y después:
viajará por el Panamá/
comerá guayabas con dulde de leche/
usará medias cancan todos los días/
bailará el baile del salón/
atarpa una cintita contra el mal de ojo en cada puerta que cruce/
saludará a la gente con dos besos/
limpiará sus dientes con cepillo eléctrico/
y
con la plata que le sobre
se volverá
su propia ama
de ninguna casa
en ningún lugar,"


Natalia Rozenblum

30.5.16

tomar as rédeas

"Aquilo que não pode ser concebido por meio de outra coisa deve ser concebido por si mesmo".

Spinoza

29.5.16

sale el blues

"sale el blues del concepto musical occidental
en el sentido de que escapa, no proviene
si uno quiere soltarse las cadenas - lo que dudo
no hay cadenas, dudo que alguien quiera liberarse
de lo que no hay, tampoco de lo que hay, que desconoce
dudo más: dudo del deseo de liberación de la especie
humano acurrucado en el rincón del canto: he ahí la imagen
sosegado en el muelle del confort, un bienestar
miedo, nuevo lugar al sol
una acuarela de barca, tinta, agua chirle
-la omnipresencia se vuelve imperceptible
la omnipresencia del troll
era la idea de un dios de una especie impalpable
no se ve: lo toma todo, no se toca: manos quietas -
un perro de algodón
negros del blues, morenos del candombe
uno escribe de la misma forma de quien deja
deshilachando mucho, a la pregunta
la respuesta: hilachas
viene un día la desmesura de no ser
el ser, último bastón
si caes sigues sola sin mí hasta que encuentres otro antes
del momento de la desmesura de no ser y así."

Eduardo Milán

28.5.16

Ignora o horizonte

"Ignora o horizonte.
Troca quentes trópicos por um doce de padaria.
Ontem pegou Ofélia pela mão no caminho para o lago e
soprou-lhe os olhos

Os sapos faziam ruído de máquina
Da consani que levava dedos
O fundo eram offsets
Roto? Flexo?

Por pouco não perdeu...
Separou corpo e mente,
a perfeição no leque repetido por vinte e cinco anos,
enxergava por um átimo o futuro.

Acordou

Anos separando verde e vermelho,
reciclando o lixo:
joio e trigo de plástico e chumbo,
gatos selvagens correndo na grama contaminada.

Toca árvores todos os dias,
olha suas folhas
desaprendeu as medidas da sua polar mor.
Cinco colheres de café e um copo de açúcar?

O esterno parou de doer no terceiro ano,
o solvente não queima mais por dentro,
mas lhe deixaram parafusos.

Abre a janela com o pé assustando as maritacas,
Que não comem cevadinha.
O cachorro late estressado no cubículo azulejado.

Cinco aqui aqui.
Cinco anos lá.

Abraços apertados,
o mar de Itapuã na boca de ferro,
o choro no ombro azul royal,
a canjica no café dos dias frios.

quero-quero."

Cristiane Gomes

27.5.16

desconcertos

talvez soubesse que havia perdido a minha vez, a minha senha, hipnotizada pelo monitor. falava alguma coisa sobre tentativa de homicídio, uma apresentadora de tv falando de outra apresentadora de tv. tv só fala de si mesmo e tudo cabe dentro dela. um hotel de luxo, um homem morreu, e eu esperando as cópias autenticadas, minha senha com três dígitos no monitor. pensei naquela vez que te levei até o aeroporto e seus olhos brilhavam diante de um café. não foi o último que tomamos juntos, mas foi o mais dolorido. e o mais bonito também. pensei naquela vez que você me buscou no aeroporto com meu pai e eu fiquei com cara de merda, agora vou ter que ficar com você, e eu mal sabia o que é mesmo que eu queria, tinha beijado outro cara na noite passada. pensei também em outra despedida, todo mundo saiu do quarto e a gente ficou lá sozinho querendo se beijar, mas com vergonha, e daí não deu outra: a gente se levantou e foi embora. com raiva deles, com raiva da gente. uma semana depois, a gente ficou e estragou o imprevisível. pensei também naqueles dez segundos antes de eu passar por outra porta de aeroporto, você me levou até lá com o carro da outra, e eu toda contente com o amor eterno até carimbar o passaporte e me sentir aliviada que estava voltando pra casa. pensei também no cachorro quente do posto de gasolina que você comeu e vomitou quando eu terminei o namoro que, na verdade, já tinha terminado na porta do cemitério. espera, que tem mais. pensei também no dia que você me deixou na porta da casa do meu pai e disse que ia me ligar no dia seguinte, mas eu sabia que não ia. você vai se casar com outra, e tá tudo bem, eu não quero me casar com você. só sentimos falta um do outro. o moço do meu lado me avisou que era meu número que estavam chamando. as cópias já estavam prontas. ainda deu tempo de pensar em mim mesma de olhos fechados e cabeça no vidro do ônibus, indo embora da sua casa para o terminal de trem, pela última vez. tem tantas mortes na tv e também numa vida só.


Ellen Maria

26.5.16

cão

"é muito admirado pelo homem
porque acredita
na mão que o
alimenta. um
arranjo
perfeito. por
13 centavos ao
dia você tem
um assassino de aluguel que pensa
que você é
Deus. um
cão não sabe distinguir um nazista de um
republicano de um comuna de
um democrata. e, muitas vezes,
nem eu."

Charles Bukowski

25.5.16

Consolo na praia

"Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-se - de vez - nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho."

Carlos Drummond de Andrade.
em A rosa do povo.

24.5.16

Feche os olhos e acorde

não se estuda um sorriso
aberto o choro não se interpreta um olhar
depois de virado não se analisa um sonho
realizado o desfecho não se compara
uma vida com a fantasia de um livro
oh, alguém vai se iludir. o universo tá aí.


Ellen Maria

23.5.16

Lenguas y afectos

"Escribo en inglés y me doy cuenta que extraño la lengua. No extraño el lugar, la ciudad, ni el país donde la hablaba, sino el entorno que esos sonidos y esa gramática construían. Sus giros idiomáticos, el modo de argumentar, las formas de exponer y debatir. El portugués, en cambio, de alguna manera, está siempre conmigo, y por lo tanto, no llego a extrañarlo del mismo modo. Entre lenguas, la vida recibe ondas afectivas y sonoras que arman una red enmarañada de intensidades."

Florencia Garramuño

22.5.16

ellos

"Sentimientos encontrados
No es encontrar los sentimientos
Sino que los sentimientos
Se encuentren lado a lado
Mudos pero sintonizados."

Rodolfo Mata

21.5.16

habitar o instante

Uma vírgula caída
no meio dos trilhos
e o que era ponto final
de uma sentença e começo
de outra, vida
se torna vocativo.


Ellen Maria

20.5.16

Dêitico

Em agosto faço três anos de mestrado
uma tese não cabe em três anos
mas quanta vida acaba
uma tese não acaba em três anos
mas quanta vida cabe
na contagem regressiva
do já
e do ainda.


Ellen Maria

19.5.16

Farelos

Um pássaro come farelos no pátio
sem a menor ideia de futuro
se seguir em frente
ou voltar
mas para onde?
Os farelos no pátio também não sabem.

Ellen Maria

18.5.16

Autotomia

"Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um vôo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca."


Wislawa Symborska
Tradução coletiva (publicada na Inimigo Rumor, 10)

17.5.16

mobal da históbia

"alguns alegam
rom e buim
não se pode
enrabalhar.
mas que rubbice!"

Ernst Jandl
Tradução: Ricardo Domeneck

16.5.16

No te basta?

"Mis amigas me habían advertido:
ya te vas a ver rodeada de hombres jóvenes
como los pájaros que sobrevuelan a San Francisco.
Ahora, las nuevas generaciones me buscan
ese momento en que no sos joven ni vieja
y ellos son curiosos, quieren saber.
Me aplaudís cuando termino de leer
decís que te gusto, que escribo bien
me presentás a tu novia, estudia Letras.
Cuando ella se va me decís un piropo.
No sé si cambiaron los códigos
o te tomaste una licencia poética.
Nene, no te basta con tu novia?
Te agradezco, pero se trata de
habitar el instante, el presente
la vida son tres dias, y ya pasaron dos."

Griselda García
(en Valderrama 15)

15.5.16

Una elegía

"En la época de mi madre
las mujeres eran probables.
Mi madre se sentaba junto a mi abuela
y las dos eran completamente de carne y hueso.

Yo soy apenas una secuela estable
de aquel exceso de realidad.

Y en la ansiedad del pasado indefinido,
en el aspecto durativo de elegir,
escribo ahora: una elegía.

(...)"

Mirta Rosenberg

14.5.16

O invisível e o inesperado

"Traduza-me, não me traduza. Por um lado, não me traduza, isto é, respeite-me como nome próprio, respeite minha lei do nome próprio que está acima de todas as línguas. Por outro lado, traduza-me, ou seja, compreenda-me, preserve-me na língua universal."

Jacques Derrida.

13.5.16

A origem

e foi assim
que todas as letras se embaralharam
e formaram seu nome
que se escondeu por nove meses
entre as espumas do nosso colchão
antes de se revelar

mas isso foi só depois
que a poesia de nossos pés
ainda mais embaralhados
caíram de sono
(e por sorte dos corpos que habitamos
já estávamos deitados).


Ellen Maria

12.5.16

Noção de Pátria

"Que faz minha memória de outras gentes
aos poucos na distância e aos sustos intocável?
Que faz com que marchemos inodoros,
eu e vós - gentes - e nós, ventos salubres
que asseveramos a lei da contumácia
na falência do sopro, e o júbilo
do sopro na denúncia da morte,
nós- os meninos do beijo à verde voz?
- Apenas o amor e, em sua ausência, o amor,
o exílio do exílio à margem da margem."

Décio Pignatari

11.5.16

Ontem

"você se deixou abraçar pela primeira vez.
até assustei,
um enlaço de anos que eu queria tanto faz tempo e nenhum momento possível na minha vista, mas ontem
você estava Pronta, estranhamento aberta quando nossos corpos se encontraram e se grudaram
pelos segundos que ficaram estendido até
hoje quando acordei e
tentei de novo, a lavanda do teu perfume sumida de mim,
eu precisava dela
pelo menos mais uma vez.
saí da cama te adivinhando pelos cômodos,
te encontrei de costas
na cozinha fazendo
suco
tão dura
quanto um tronco
morto
por um machado na mão do homem que não sabe que se mata enquanto mata
o tronco, foi
triste e ver Fria
mesmo depois de
Ontem.
pelas cordas invisíveis em mim que me avisam do
melhor ir ou
melhor não ir (chamam intuição, prefiro
a Corda)
por ela notei
que ontem morreu como possibilidade de hoje.
alguma coisa que não se repete acontece com a gente dia a dia.
com o mar também. com as guerras. nada é igual a ontem nem 1 tiro dado igual,
nenhuma onda exatamente do mesmo ou no mesmo lugar,
o surfista ontem surfou,
hoje caldo e
natação, nenhuma pessoa
sobrevive ao
hoje. em um jornal da cidade
se teve notícias que alguém não mudou. depois descobriram
que o jornal era um livro de poesias,
vê? não adianta fugir da coisa.
ela é pequena e sem nome, mas tem nos quadros dos pintores que enlouqueceram.
é uma vírgula no vento que bate nos cílios,
uma bobagem na carne morta levemente viva quando o garfo a espeta,
alguma coisa entre o piano e o dedo além do
pó que
Muda
a gente
profundamente nos tornando 1 ser humano diferente por dia.
é Mínimo,
só percebe isso
quem já descobriu por dentro que somos esse alguém que nos abandona no fim do dia pra nunca mais.
o mas não percebe. a montanha os pássaros
não percebem. a água
só cai do olho de quem notou."

Aline Bei

10.5.16

a supposedly fun thing i'll never do again

"Saber viver, saber ser preso, saber ser solto."

Augusto de Campos

9.5.16

Aproximação como busca, que nunca chega ou encontra

fechadura enferrujada
                                   chave também
as janelas sujas cheias de marcas
são dedos
um batizado antes do nascimento é prefigurar a morte
compro flores
pago em notas miúdas
                                    aqui segue o inverno
elas que vêm de fora
de um país onde
tampouco duram muito
                                     não conhecem a manha
há tantas coisas sobre a cama que às vezes durmo sobre
outras no sofá
até que o sol me cubra ou exploda
escrevo.


Ellen Maria

8.5.16

Saudação

"Oh geração dos afetados consumados
e consumadamente deslocados,
Tenho visto pescadores em piqueniques ao sol,
Tenho-os visto, com suas famílias mal-amanhadas,
Tenho visto seus sorrisos transbordantes de dentes
e escutado seus risos desengraçados.
E eu sou mais feliz que vós,
E eles eram mais felizes do que eu;
E os peixes nadam no lago
e não possuem nem o que vestir."

Ezra Pound

7.5.16

O que é o desejo

se incha o algodão de sangue antes do sangue
antes de cair
uma só gota se incha o algodão
de sangue.


Ellen Maria

6.5.16

Em forma mais feliz

"em forma mais feliz e produtivo
satisfeito
nada de beber demais
exercício regular na academia (3 vezes por semana)
lidar melhor com seus colegas de trabalho na empresa
em paz
comer bem (nada de jantar de microondas e gorduras saturadas)
motorista melhor e paciente
carro mais seguro (bebê sorri no banco de trás)
dormir bem (sem sonhos ruins)
sem paranoia
cuidadoso com os animais (nunca mandar aranhas pelo ralo)
manter contato com velhos amigos (um drink de vez em quando)
sempre checar a conta (buraco no muro) no banco (de boas ações)
favor com favor
afetuoso não apaixonado
caridade por débito automático
compra de mês no domingo
(nada de matar mariposas ou ferver formigas)
lava-rápido
não ter mais medo de escuro
ou de sombras ao meio-dia
é tão ridículo adolescente & desesperado
tão infantil
num ritmo melhor
mais lento e calculado
sem chance de fuga
agora autônomo
preocupado (mas impotente)
membro capaz & informado da sociedade (pragmatismo não idealismo)
não chorar em público
menor risco de doença
pneus de chuva (foto do bebê com cinto no banco de trás)
boa memória
ainda chora num bom filme
ainda beija com saliva
não mais vazio nem fora de si
como um gato
preso a um pau
que se crava no
cocô gelado de inverno (a habilidade de rir nas fraquezas)
calmo
em forma, mais saudável e produtivo
um porco
numa jaula
sob antibióticos."

Thom Yorke
Tradução: Dirceu Villa

5.5.16

Breve relato mitológico inspirado en las tareas del hogar

"Pasa el polvo
y el polvo vuelve.

Progresión geométrica
a su alrededor
en las opciones del desorden.

La suciedad se aparta, se destruye
y regresa.

Cada día en la ropa
nuevas manchas
de dificil limpieza.

Etc."

Sandra Santana

4.5.16

O que vale

"Eu vou dizer, não há nada muito importante. A vida é só uma vinheta, um haikai perto da eternidade. Então talvez o que valha mesmo no fim das contas são os segundos que você passa apreciando uma gravura do Hopper ou aquela gota de suor que escorre pro umbigo da mulher que você ama. O que vale são os pequenos detalhes. O que vale não é o poema, é o verso que resume todo o poema. O que vale não é a peça de teatro que escrevi. É ficar esperando a peça inteira para dizer aquela fala. A fala exata, aquela que eu sempre quis dizer, e por isso acabei escrevendo uma peça inteira só pra poder dizer."

Mário Bortolotto

3.5.16

Ainda é cedo

olho pro céu buscando algo
me escapa o nome daquilo que sobra do cigarro
seja o que é
                                jogo longe
estou em terra nova de cinquenta estrelas
faz frio mas ainda não tremo
e não conheço ninguém por mais de vinte e quatro horas
um rosto
                 no entanto
                                   na fumaça que sopro se volta
com certa familiaridade
que sinto ter em situações de tímido desespero
brando (alguma vez já te aconteceu isso?)
e quando me vejo incapaz de seguir
olho pra ele
e ainda é cedo
falta mais música
                a dança
                              uns tragos
                              canções em guitarra
o corpo aguenta muito sem filtro
até que a noite pertença somente aos gatos
olho pra ele sem desculpa
(te tive aí, por uns segundos, em pause)
e de repente, vem o nome:
                                             bituca
                                                         guimba
(como será que diz em tua outra língua?)
e já é hora de voltar
                               ao ponto
                               de partida.


Ellen Maria

2.5.16

Durante tantos años tuve hambre

"Durante tantos años tuve hambre-
Hasta que llegó mi mediodía - mi hora de comer -
Temblando me acerqué a la mesa -
y probé el vino extraño -

Era lo que había visto sobre otras mesas -
Cuando volvía, hambirenta, a casa
y veía por las ventanas la opulencia
que no podía pretender para mí -

No reconocí la abundancia del pan -
Tan diferente de las migajas
que los pájaros y yo compartíamos
en el comedor de la naturaleza -

La plenitud me lastimó - era algo tan nuevo -
Que me sentí enferma - y rara -
como un fruto del árbol montañés -
transplantado al camino.

Tampoco estaba hambrienta ya - descubrí
que el hambre - es algo que sienten
aquellos que miran por las ventanas desde afuera -
y que, entrando, lo pierden."

Emily Dickinson
Traducción: Isaías Garde

1.5.16

El pacto

"Si me enciendes, no aguardes
de mí un lenguaje al uso,
los desgastados ritos del amor,
las consabidas normas,
los burdos reglamentos
que matemáticamente predicen
cómo todo se teje y se desteje.
Si me prendes,
no dejes leña para un día
que acaso nunca ha de llegar,
y arriésgate al juego prohibido
que ignora la aritmética y el cálculo.
No te cubras, no conserves:
organiza tu vida para el fuego.
Este es el pacto: si me incendias,
arde conmigo."

Alfonso Brezmes

30.4.16

Envidia de los poemas ajenos

"En una versión de la leyenda las sirenas no saben cantar.
Que sepan hacerlo era solo una historia de marineros.
Así que Odiseo, atado al mástil, sufre el tormento
de una música que no oye - el chapoteo del mar,
el cambio del viento, el apetito costero de las aves -
y las calladas mujeres que recogen algas para abonar su jardín,
al verle forcejear con el cordaje, al ver en sus ojos
tan tremendo deseo, quedan transformadas para siempre
en el badío rocoso de su isla por lo que imaginan
que él imagina que es la canción que no han cantado nunca."

Robert Hass
Traducción: Andres Catalán

29.4.16

Soneto 29

"Cuando, castigado por la fortuna y los hombres,
en soledad lamento mi condición de paria,
y con mi llanto en vano molesto al sordo cielo,
y me paro a mirarme, y maldigo mi suerte,

y deseo el futuro de alguún afortunado,
y su punto de fama, y su copia de amigos,
y ansío de este el arte y de aquel sus recursos
con lo que más disfruto aún menos satisfecho;

mas cuando al borde me hallo ya des desdén propio,
pienso felizmente en ti, y me ánimo, entonces,
parecido a la alondra que con el alba se alza
de la tierra, canta himnos a las puertas del cielo;

recordar tu tierno amor supone tal fortuna
que ni el lugar de los reyes cambio por el mío."

William Shakespeare
Traducción: Andres Catalán

28.4.16

A propósito

Não sem mim
a dizer ao ouvido
de quem julgara
preparado
o avião de papel

uma lista de desejos
só voa quando
a janela é aberta.


Ellen Maria

27.4.16

Alforria blues

"Espero a hora de dizer: o jeito que te vejo vivo em mim como um cavalo derrubando as paredes pelas escadarias.

O mar guardado em tuas gavetas."

**

"Espero la hora de decir: el modo que te veo vivo en mí como un caballo derribando las paredes por las escaleras.

El mar guardado en tus cajones."


Julia Hansen
Traducción: Ellen Maria

26.4.16

Parto

Um tempo só
habitável
entre o engasgado
e o olho cheio d'água
grita o indizível:
O inefável nasce na entropia
de ao menos duas vidas.

Um rasgo
natural ou artifício
e apesar da chance
existência de algum amor
a luminosidade cega:
uma mulher será mãe
e a outra, algemada.


Ellen Maria

25.4.16

astronauta

o luto
daquilo que matei
não é mais brando
e do mesmo amargo
é o café
só 
ou com açúcar.

há coisas e gestos
pessoas e corpos

tempos de foguetes
em que tudo se despedaça
menos o que se despede
este permanece
quente
no espaço.


Ellen Maria

24.4.16

Metereopatia

Noite de chuva,
pergunto às horas
e a forra me desapossa:
twent'and-tears nem é meia
noite ainda e me desfaleço em
choro
água
água
água água.

Ellen Maria

23.4.16

"El humor es algo parecido a la felicidad, a la revolución y al amor."

Roberto Bolaño

22.4.16

Vero Nome

"Chamarei deserto a este castelo que tu foste.
Noite à tua voz, ausência à tua face,
E quando caíres sobre a terra estéril,
Chamarei nada ao raio que te trouxe.

Morrer é um país que tu amavas. E eu venho
Eternamente por teus sombrios caminhos.
Destruo teu desejo, tua forma, tua memória,
Sou teu inimigo que não terá piedade.

Chamar-te-ei guerra e sobre ti
Tomarei as liberdades da guerra. Terei então
Em minhas mãos o teu rosto, obscuro e traspassado,
E em meu coração o país que acende a tempestade.

Da crepitação noturna de uma terra supliciada,
Necessita a luz para surgir
E é de bosques tenebrosos que a flama salta.
O próprio verbo sonha a essência
Uma plácida margem além do canto.

Para que vivas, precisarás transpor a morte.
A mais imácula presença é um sangue entornado."

Yves Bonnefoy
Tradução: Lenilde Freitas

21.4.16

Pedido

receba um pouco
deste peso da armadura, este corpo
defeituoso, olhos vermelhos, marcas de catapora,
inúmeras aftas, inflamações, sobrante ácido lático,
fantasmas em linhas tortas em pele calejada,
mas nada falta
nem uma unha, um punho, um dente, um queixo, um cacho,
deixa eu cair nuns braços por ao menos
mais um pouco
depois escorra o que resta,
joga no ralo, não se despeça,
este corpo só quer
fim de disputa.


Ellen Maria

20.4.16

Son(h)o

Não seria discussão
mas manha
na hora de dormir
um pouco mais, diria
e eu fechando os olhos
concordaria
um pouco mais
até que a respiração mais profunda
fizesse soprar
é noite, é noite
minha mão em seu rosto sente
você a colocou aí
e também fechou os olhos.

Ellen Maria

19.4.16

Indobrável

saudade dos dedos enrugados
dos remendos possíveis
e da velhice longínqua

passou o tempo
das piscinas de plástico
abre um vão
e a enxurrada no quintal
olho o céu
parece que ele não vem
também não tem
nem uma nuvem.


Ellen Maria

18.4.16

TV (ou marcas de poder)

veja com atenção:
eles homens sábios e sérios
estalam os dedos
pressionam as falanges assim
produzem um barulho que não se escuta
e as bordas das unhas contra a pele
desenham meia luas como chagas
agora levam um destes extremos à boca
mordem a beira do calo
com a ponta do dente
calmamente
e um movimento linguístico
lança o ínfimo excluído
pedaço de carne
para longe.

a câmera grava
e você
viu?
toda sua atenção em quase nada.


Ellen Maria

17.4.16

El problema del duelo

"Una hormiga muere y nadie la llora
Un pájaro muere y nadie lo llora, salvo que se trate de un ibis nipón
Un mono muere, los monos lo lloran
Un mono muere, los hombres le levantan la tapa de los sesos
Un tiburón muere, y otro tiburón sigue surcando el agua
In tigre muere, un hombre lo llora, llorándose a sí mismo
Un hombre muere, hay quienes lloran y quienes no
Un hombre muere, hay quienen lo lloran y quienes aplauden
Una generación muere, y la próxima básicamente no la llora
Un país muere, y a menudo deja apenas historias controvertidas
Un país que no deja historias controvertidas no es un verdadero país
A menos que se trate de un verdadero país, un país muere y nadie lo llora
Nadie lo llora, quiere decir que el viento sopla en vano
Quiere decir que el río corre en vano, que en vano embiste las rocas
En vano brilla su oleaje, en vano produce espuma
El río muere, no corresponde a los hombres llorarlo
El viento y el río corren juntos hacia el océano, un océano vasto como en Zhuangzi
El océano vasto muere, y vos también tenés que morir
El rey dragón muere, vos también tenés que morir
La luna no se lamenta, porque en la luna no hay nadie
Las estrellas no se lamentan, no son de carne y hueso."

Xi Chuan, 1963.
Traduc. Miguel Angel Petrecca

16.4.16

hoy

"Hoy que el dolor se empeña en ser caricia
en mi ciega costumbre de esperarte
siempre
como a escondidas
en este rincón húmedo
de tanta madrugada
viviendo en un reloj
que no se calla;
ahora que la luna se ha cansado
de buscarnos en abrazo y sin normas
-como también yo-
me atrevo a confesarte
que llorar no era un lujo para mí
ni todas estas tardes de diciembre,
tan largas.
Ahora he comprendido que es posible
tu boca sin la mía
y me retiro
antes de que conquistes nuevamente mi espalda
y a mí no me parezca suficiente."


Marianne Ruiz, España, 2014.

15.4.16

Piada pronta

e depois da piada
disse o português
ao brasileiro
na língua dele:

- pois
vai
estar
tendo
troco.

Ellen Maria

14.4.16

Despedida (ou sistema anti-circular)

tem ar
e tem outra coisa
um vazio

que não faz eco
porque não tem voz
que entre

mas tem
também
mil gritos apertados
qual é mesmo a palavra

sufoco

não não
é mais esganado
se engana quem pensa que tem
não tem

não é presença
nem ausência
de som
só é

silêncio

expiro quando corro
sem voltar
escuto a caixa
no ouvido
não tem
pálpebras
nem cílios

inspiro

o que não é visto não existe
ou insiste
em ser lembrado
é isto
e aquilo
às vezes persiste mais

e sibila
acentuado
rouco
zumbido
e ressoa
até o infinito

mas às vezes nada.

um sistema anti-circular.


Ellen Maria

13.4.16

Silêncio, agora

não se define
saudade
dizem que é impossível habitar
dois espaços ao mesmo tempo
ma(i)s que fumar no deserto
é isso.


Ellen Maria

12.4.16

Terapia de choque

"A verdadeira escolha com relação ao trauma histórico não está entre lembrar-se ou esquecer-se dele: os traumas que não estamos dispostos a ou não somos capazes de relembrar assombram-nos com mais força. É necessário então aceitar o paradoxo de que, para realmente esquecer um acontecimento, precisamos primeiramente criar a força para lembrá-lo. Para responder a este paradoxo, devemos ter em mente que o contrário da existência não é a inexistência, mas insistência: o que não existe continua a insistir, lutando para passar a existir."

Slavoj Zizek.

11.4.16

Desejo e experiência

"O desejo, ao contrário, pertence à categoria da experiência. 'Aquilo que desejamos na juventude, recebemos em abundância na idade madura', escreveu Goethe. Na vida, quanto mais cedo alguém formular um desejo, tanto maior será a possibilidade de que se cumpra. Quanto mais se protege um desejo distante no tempo, tanto mais se pode esperar por sua realização. Contudo, o que nos leva longe no tempo é a experiência que o preenche e o estrutura. Por isso o desejo realizado é o coroamento da experiência. Na simbólica dos povos, a distância no espaço pode assumir o papel da distância no tempo; esta a razão porque a estrela cadente, precipitando-se na infinita distância do espaço, se transformou no símbolo do desejo realizado. A bolinha de marfim rolando para a próxima casa numerada, a próxima carta em cima de todas as outras, é a verdadeira antítese da estrela cadente. O tempo contido no instante em que a luz da estrela cadente cintila para uma pessoa é constituído da mesma matéria do tempo definido por Joubert, com a segurança que lhe é peculiar: 'O tempo - escreve - se encontra mesmo na eternidade; mas não é o tempo terreno, secular... É um tempo que não destrói; aperfeiçoa, apenas.'"

Walter Benjamin.

10.4.16

pesadelo

no grito pelado
acordo
mão na testa:
a febre é interna.

Ellen Maria

9.4.16

proustiana

"e eis que
por falta de microondas
você requenta
um café com leite
numa panelinha
e seus avós
mortos
saem voando
pela cozinha
junto com a fumaça
açucarada
e pousam
aqui
bem
sobre
este
teclado."

Paloma Vidal

8.4.16

Conejo

"La soledad se escribe
cuando uno de los pies
vuela hacia delante del otro
cómo iremos a ese lugar
si sólo existe cuando sueñas
si no hay conejos en la calle
si los niños aprenden
          a sacarse el corazón."


Hanna Figueroa

7.4.16

dentes

"sonhei com dentes. de manhã perguntei ao grande oráculo o que quer dizer sonhar com dentes. leio: em serra leoa, kadhiatu abkar faz esculturas em dentes. pequenas paisagens, caveiras, animais, castelos. não em dentes caídos, em dentes vivos, ainda na boca. como se um elefante permanecesse com seu marfim esculpido. assim, ela diz, os sorrisos são mais frequentes. é como cortar os cabelos para mostrar brincos novos, exibir o corpo onde pousam novas tatuagens. fotos anônimas mostrando os sorrisos com as esculturas de kadhiatu foram expostas em 2011 num pequeno museu de makeni. kadhiatu, que perdeu todos os seus dentes ainda na adolescência, nunca sorri."

veronika paulics

6.4.16

Realidade

e eu metida as piras das catástrofes
neta de quem sou
filha de quem diz
não vejo programa sensacionalista na tv
nem ouço rádio patrulha
mas penso
que se morrer na esquina
contra o poste do posto de gasolina
qualquer dia desses
vou deixar minha tese pela metade
nenhum filho no mundo
graças a deus
e no último segundo de sanidade
ou consciência
que deve ser a mesma coisa
minha cabeça vai explodir
de alegria
ufa! até aqui sobrevivi
como virgindade de vagalume.


Ellen Maria

5.4.16

ou procrastinação

preparar a lista com esmero
e não cumpri-la
pela emoção de transgredir
e se arrepender
daquilo que
(sem querer querendo)
viveu
não vivendo.

Ellen Maria

4.4.16

retenidos y perdidos

cuando recuerdo no recuerdo
invento
una lista de cosas
yogurt
arvejas congeladas
cactus
libros
compu
balones
aguas
calefón
polvo
no me acuerdo del sexo
solo de los bailes
y las cahuamas
y las series con pizza
el diario en la radio
poesía poesía poesía
y nada
dos viajes
explosión de fuego
luna
medicinas
cafés
no me acuerdo del beso
lágrimas
fiebre
a veces creo que no hubo
más que esa lista
hasta que me acuerdo.

3.4.16

Crer-Sendo

"Preciso amar de menos
de menos a mim e mais atento
preciso amar atento
atento pra não ceder por dentro

por dentro que está
por dentro que palpita aqui por dentro
amar jamais será demais
e equilibrar

não há
não há porque viver
se não pra crer e ser crescendo sendo
não há
não há porque amar
se não pra semear conhecimento

preciso amar sabendo
sabendo que às vezes só eu só e só
preciso amar eu só
que é só que só me encontro dentro

por dentro que está
por dentro que walkie talkie por dentro
amar
e equilibrar."

Lucas Castello Branco

2.4.16

O vento

"E o esforço pra lembrar 
é vontade de esquecer."


1.4.16

Preguntas

"Ya que navegas por mi sangre
y conoces mis límites,
y me despiertas en la mitad del día
para acostarme en tu recuerdo
y eres furia de mi paciencia para mí,
dime qué diablos hago,
por qué te necesito,
quien eres, muda, sola, recorriéndome,
razón de mi pasión,
por qué quiero llenarte solamente de mí,
y abarcarte, acabarte,
mezclarme en tus cabellos
y eres única patria
contra las bestias del olvido."


Juan Gelman

31.3.16

Diário de viagens

alargam-se os meses
rios que secam
e as pessoas encostadas
é falta de nuvem                      
                          pensam
mas uma bruta chuva do outro lado me confessa
aqui também finco
na preguiça
não excederá pão enquanto transbordar fome.


Ellen Maria

30.3.16

O estado das coisas

revi aquele filme
do wim wenders
onde a filmagem para no meio
do filme
porque acaba a renda
lado a lado com aquele
que outro dia me perguntou
vamos encomendar um filho
olhei assustada
sem renda para ir ao cinema
baixei da internet
o filme
e do filho
escrevi o roteiro
a filmagem para
antes mesmo de começar
não nasce um mito
hoje
nem outro diabo.


Ellen Maria

29.3.16

Caderninho preto

tv que vejo
e do lado de dentro
quem me vê?


Ellen Maria

28.3.16

ele

descansa os lábios
por um instante

pensa

a vida encerra peças
debaixo do taco

parece

não há quebra-cabeça
suficiente para dar conta
do espaço reservado

não desiste
quieto
até que encontra

cela estes lábios
por um instante.


Ellen Maria

27.3.16

jornada adicional

Guardar todos os sonhos úmidos
das tristezas extraordinárias
restar só suores noturnos
das turbulências imaginadas
resguardar certos perigos
das luas cheias
sustentar a cabeça e às vezes
esvaziá-la
sem direito a férias
o labor de oito horas
é compensado com um ou outro
banho de sol
e em algumas manhãs
perfumado e maciota
o travesseiro descansa.


Ellen Maria

26.3.16

over the sea

"El límite para la poesía depende de la dimensión de tu universo."

Maurizio Medo

25.3.16

A idade

De repente a gente envelhece
o cabelo afina
e cai
as orelhas prestam atenção
e caem
a pele arde
e cai
amor e tristeza ao redor dos olhos
óculos escuros
não são vaidade da idade
a discussão afina
e cai
as lágrimas prestam atenção
e caem
o peito arde
amor e tristeza dentro dos olhos
a voz fica pouca
a vontade de libertá-la
vira vontade
de calar
e cair
mais vezes
a gente prioriza outras coisas
ao envelhecer.


Ellen Maria

24.3.16

escritos geográficos

"O que há
entre as mulheres
e as janelas?"

Paloma Vidal

23.3.16

Llorar a lágrima viva

"Llorar a chorros.
Llorar la digestión.
Llorar el sueño.
Llorar antes las puertas y los puertos.
llorar de amabilidad y de amarillo.
Abrir las canillas,
las compuertas del llanto.
Empaparnos el alma,
la camiseta.
Inundar las veredas y los paseos,
y salvarnos, a nado, de nuestro llanto.
Asistir a los cursos de antropología,
llorando.
Festejar los cumpleaños familiares,
llorando.
Llorar como un cacuy,
como un cocodrilo...
si es verdad
que los cacuyes y los cocodrilos
no dejan nunca de llorar.

Llorarlo todo,
pero llorarlo bien.
Llorarlo con la nariz,
con las rodillas.
Llorarlo por el ombligo,
por la boca.
Llorar de amor,
de hastío,
de alegría.
Llorar de frac,
de flato, de flacuta.
llorar improvisando,
de memoria.
Llorar todo el insomnio y todo el día!"

Oliverio Girondo

22.3.16

si se ha...

"Si se ha de escribir correctamente poesía
no basta con sentirse desfallecer en el jardín
bajo el peso concertado del alma o lo que fuere
y del célebre crepúsculo o lo que fuere.
El corazón es pobre de vocabulario.
Su laberinto: un juego para atrasados mentales
en que da risa verlo moverse como un buey
un lector integral de novelas por entrega.
Desde el momento en que coge el violín
ni siquiera el Vals Triste de Sibelius
permanece en la sala que se llena de tanto.
Salvo las honrosas excepciones las poetisas uruguayas
todavía confunden la poesía con el baile
en una mórbida quinta de recreo,
o la confunden con el sexo o la confunden con la muerte.
Si se ha de escribir correctamente poesía
en cualquier caso hay que tomarlo con calma.
Lo primero de todo: sentarse y madurar.
El odio prematuro a la literatura
puede ser de utilidad para no pasar en el ejército
por maricón, pero el mismo Rimbaud
que probó que la odiaba fue un ratón de biblioteca,
y esa náusea gloriosa le vino de roerla.
Se juega ajedrez
con las palabras hasta para aullar.
Equilibrio inestable de la tinta y la sangre
que debes mantener de un verso a otro
so pena de romperte los papeles del alma.
Muerte, locura y sueño son otras tantas piezas
de marfil y de cuerno o lo que fuere;
lo importante es moverlas en el jardín a cuadros
de manera que el peón que baila con la reina
no le perdone el menor paso en falso.
Quienes insisten en llamar a las cosas por sus nombres
como si fueran claras y sencillas
las llenan simplesmente de nuevos ornamentos.
No las expresan, giran en torno al diccionario,
inutilizan más y más el lenguaje,
las llaman por sus nombres y ellas responden por sus
nombres
pero se nos  desnudan en los parajes oscuros.
Discursos, oraciones, juegos de sobremesa,
todas estas cositas por las que vamos tirando.
Si se ha de escribir correctamente poesía
no estaría de más bajar un poco el tono
sin adoptar por ello un silencio monolítico
ni decidirse por la murmuración.
Es un pez o algo así lo que esperamos pescar,
algo de vida, rápido, que se confunde con la sombra
y no la sombra misma ni el Leviatán entero.
Es algo que merezca recordarse
por alguma razón parecida a la nada
pero que no es la nada ni el Leviatán entero,
ni exactamente un zapato ni una dentadura postiza."

Enrique Lihn

21.3.16

ilhas

Um sorriso cheio de dentes
de maresia
umas bochechas que quer morder
pão de cará
e uns olhinhos pequenininhos
brigadeiro da Itanhaém
na Rochinha tem também
e uns cabelos grisalhos
piscina que se vê o fundo
e mergulha
primeiro a mão
pra ver se descobre
se dá pé
um sonrisal escorrega na beira
e a gente se esburracha
na frente do azul
o aquário te dou a outra mão
pra levantar e me despedir
atravesso a balsa
sem voltar
estarei do lado
de lá
(de binóculo).



Ellen Maria

20.3.16

Teu nome

"aonde anda a onda
a onda ainda
ainda a onda"
Bandeira

Todo nome tem seu demônio
seu arcanjo
um trono sem dono
Ninguém doma um nome
que sono
que sonho
nomear a onda que chega
um nome para cada onda
A história finita de cada
onda
espuma
homem

não há nome
que permaneça.


Ponho um nome para cada onda
que atravesso
que me atravessa

Depois ando
um pouco
e esqueço

e a onda esquece.


Ellen Maria

19.3.16

desglutição

"que é que é isso
ora em crescendo ora em diminuendo entre a abóbada
palatina e o tapete vermelho
que é que é
isso que nos instantes que nomeiam
alegria
por ela devemos servir
mas é de bom grado no tempo que dominam
as nomenclaturas de tristeza
perguntarmos antes de encher o pote

oh bom senhor
quanto disto deseja

não sei
qual o gosto disso

uma mesma via
de lamber o gosto
de dizer o gosto
materna ou segunda ou

pode ser
carne ou não

mas e lacuna vazia

pode ser também até bifurcada tem
ou uma insônia
tipo um dormir ao contrário
e tem quem fala dormindo

ou traduções

a hora errada no seu relógio de pulso
é a certa de outro braço
em outro lugar de mundo ou pedaço de
adiantamento ou atraso é uma outra
que inventamos para dizer

mapa

me encontra na latitude tal
longitude essa
coordenada é uma outra que inventamos
para dizer

casa

as linhas que seguram e as que traçam
palavra
não são a dita ela mesma
mas dizer isso é já uma outra
falar

que dó

em áfrica ou qualquer outra embaixada
não trava paz entre as minas terrestres
e as pernas amputadas
diplomacia é uma outra que inventamos
para dizer

deserto

fazer o bem sem olhar a quem
mas com data local platéia e parafernália
abutres alimentando pombos
cobrar os créditos é uma outra que inventamos
para dizer

caridade

que pode ou não ser sazonal
que pode ou não ser teoria do benefício

uma lista de expressões estereotipadas
tem a
maior que a boca
mas é uma
ferina
deu com a
nos dentes
é uma outra que inventamos
para dizer

dicotomia
e ou parâmetro do humano
não saber guardar
segredo que todo mundo já sabe

a bola é minha joga quem eu quiser

é uma outra que inventamos
para dizer

lirismo

na foto de nove soterrados contar dez
no texto pensar

será que erramos aqui

é uma outra que inventamos
para dizer

empatia

encostar sem tocar na caixa
perceber a acústica torácica e seu altifalante
indefinidas polegadas
é mais outra que inventamos
para dizer

auscultar

interface de descoisar
aquilo que vai aí e cá dentro
que é que é isso
langue parole ou burburinho

uma língua

é uma língua e
outra coisa é outra cousa."

Ricardo Escudeiro