23.6.16

a última parte de HP

O primeiro é situar-se. Depende do planeta inimigo, a escolha da arma. É preciso traçar um método eficaz de sobrevivência, ainda que temporário. Todo ato surpresa acarreta uma recalculação do plano e um arsenal à postos de instrumentos mortíferos para ataque e defesa.
Às vezes não há lugar mais hostil na Terra que o terminal rodoviário.
Faço o possível para tornar-me invisível. Não é preciso ter visão raio-x ou microscópica para sentir que as milhões de bactérias e vírus, que habitam todo e qualquer elemento naquelas centenas de metros quadrados, não são o pior que posso temer. Não é preciso ter um quociente de inteligência elevado ou um poder sobrenatural para compreender que aquelas dúzias de homens parados ali querem me comer e já pensaram em coisas bem piores pra fazer que esperar um ônibus chegar para partir. O bilheteiro faz questão de tocar minha mão enquanto me entrega o ticket da passagem. Um sabre de luz cortante me caía bem. (Ou a ele). Não é cortês ou acidente, é intenção. Eu poderia matá-lo também com um simples rodopiar da minha varinha mágica. Avada Kedavra. O vendedor da padaria armada arma o teatro da gentileza em um tom que causaria inveja aos apresentadores veteranos de tv. Meu bem querer, o que você vai querer hoje? (Desaparecer). Ele olha para meus peitos enquanto me serve um pão na chapa, toca meu ombro depois de me trazer o café com leite. 38, AK-47, chumbinho ou um tiro de borracha no seu pau. Pode escolher. Todos os outros me olham e fazem seu papel de meros figurantes. Uma bomba relógio presa no meu cinto apita a contagem regressiva. Não me escondo atrás da mulher maravilha. Sou ela. (Só que não). Quase desabafo de ódio, derreto meio pão no copo americano, ponho pra dentro e fujo dali. A fila de taxistas com suas camisas celestes de botões abertos cochicham qualquer coisa que meu ouvido de tuberculoso não me permite distinguir mais que gostosa. Uma granada na garganta de cada um deles. Um desintegrador de espermas.
Meu ônibus chega. O motorista anuncia a hora e o destino, e os ansiosos se encaminham para subir e se esconder cada quem em sua caverna-poltrona. Minutos depois, o que parece ser o último passageiro sobe; o motorista recolhe minha passagem enquanto ainda reluto para entrar. Enquanto permaneço ali, ele lê atentamente e em voz alta meus dados escritos a caneta, caso haja um acidente, telefone, identidade e puxa um assunto de mas você vai viajar sozinha, linda? Um raio fulminador de cérebro e língua. Pela minha afirmativa congelante, ele sabe que não devia ter falado nada. Eu volto minha observação para a porta de saída do terminal. Ele agora sabe que estou esperando aquele homem que está vindo em minha direção. Ele se afasta para fazer alguma coisa burocrática e observar os próximos movimentos do homem que se aproxima. Três segundos. Não nos olhamos nos olhos. Nos abraçamos com força. Sou eu. Ele nem precisa dizer. Absorvo tudo o que eu posso pelo olfato, pelo tato. Pelas partes que me tocam. Barriga, braços, rosto, pedaços de pernas. Minha pedra filosofal. Três segundos de antídoto. De derretimento da armadura para a fabricação do mais sublime afeto. Não falamos mesmo nada. Era só isso. Me despeço entrando no ônibus sem olhar para trás. O motorista liga o motor, parte e pronto. Volto a ser a heroína que sempre sou. Exceto nesses três segundos de imortalidade.


Ellen Maria

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