30.6.17

Pequeno tratado de estética indígena

aquele que vê um índio
à luz de um outro luar
a pele exposta ao fogo
traçados de muitas cores
cocares, penas de aves
adornos por todo o corpo
os guizos e os maracás
a música que o envolve
e pensa: ele está nu
não tem olhos para ver
não tem ouvidos que ouçam
aquele que vê um índio
e pensa onde estão as roupas
não sabe o que são as coisas
vestindo este mundo infindo

Leandro Durazzo

26.6.17

fatou

Parece um jogo
uma dança
uma prosa
um filme

ainda que não pareça
o que é

é o que sobra das horas
no tempo das catástrofes

sereno apocaliptico
um frio
que afoga

apenas um escasso intento
de manter-se.

22.6.17

"Jamais se perde aquilo que não se possui.
Assim é dito, assim se passa, em todos os quadrantes,
nas dez mil direções.
Jamais se ilude quem assim se instrui."
Excerto do Cânone Médio de Yi-huá

21.6.17

Exercício de mendicância

Nos vestimos com roupas sujas e rasgadas, tiramos os sapatos, emporcalhamos o rosto e as mãos. Vamos para a rua. Ficamos parados, esperando.
Quando um oficial estrangeiro passa na nossa frente, levantamos o braço direito para cumprimentar e estendemos a mão esquerda. Quase sempre, o oficial passa sem se deter, sem nos ver, sem nos olhar.
Finalmente, um oficial para. Diz qualquer coisa numa língua que não compreendemos. Ele nos faz perguntas. Nós não respondemos, quedamos imóveis, um braço levantado e o outro estendido. Então ele remexe nos bolsos, coloca uma moeda e um pedaço de chocolate em nossas mãos sujas e vai embora balançando a cabeça.
Continuamos esperando.
Passa uma mulher. Estendemos a mão. Ela diz:
- Pobres meninos. Não tenho nada para dar a vocês.
Ela nos faz uma carícia na cabeça.
Nós dizemos: 
- Obrigado.
Uma outra mulher nos dá duas maçãs e uma outra, ainda, biscoitos.
Uma mulher passando. Estendemos a mão. Ela para e diz:
- Não têm vergonha de mendigar? Venham à minha casa que eu tenho uns trabalhinhos fáceis para vocês. Rachar lenha, por exemplo, ou limpar o terraço. Já são grandinhos e fortes para isso. Depois, se trabalharem bem, eu dou sopa e pão.
Nós respondemos: 
- Não temos vontade de trabalhar para a senhora, nem queremos comer sua sopa, nem seu pão. Nós não temos fome.
Ela pergunta:
- Então, por que estão mendigando?
- Para saber qual é o efeito que isso faz e para observar a reação das pessoas.
Ela vai embora gritando:
- Vagabundinhos de merda! E impertinentes ainda por cima!
Na volta para casa, atiramos nas touceiras que ladeiam a estrada as maçãs, os biscoitos, o chocolate e as moedas.
A carícia nas nossas cabeças é impossível jogar fora.

(de Um caderno e tanto) - Agota Kristof

20.6.17

"e Júpiter — o maravilhoso — entrou agora pouco no signo de Escorpião. adeus equanimidade libriana! nós agora vamos aprofundar no intenso, denso e aquático viver da regeneração. é tempo de transformação psíquica, espiritual e emocional — coisas que podem doer, mas é pra expurgar os venenos. afinal, Escorpião enfrenta qualquer coisa que for podre pra purificá-la em poder vital.
a última vez que Júpiter esteve em Escorpião foi entre o fim de outubro de 2005 e o fim de novembro de 2006, mas a configuração era muito mais restritiva do que agora, já que na época tal Júpiter quadrava Saturno em Leão e Netuno em Aquário.
pessoas com fortes presenças em signos de água tendem a ser beneficiadas pela sorte e também a desaguar os mundos fecundos que existem em si. pra todo mundo as intensidades psíquicas e emocionais se tornam os lugares pra gestar as transformações. paixões, pulsões e desejos vão se amplificar — nem que seja pra nos fazer morrer e nascer de novo. é tempo de excessos emocionais. quem gosta de emoções e sentimentos leves vai ter um longo ano pela frente...
Júpiter em Escorpião sabe que há algo de enigma e mistério em tudo e a gente se aproxima com paixão: e essa aproximação não desfaz o enigma, pelo contrário, é tempo de viver com força o que não será necessariamente e nem precisa ser revelado.
Júpiter desta vez fica em Escorpião até o dia 8 de novembro de 2018 — quando adentra sua morada sagitariana.
— quem tem desejo tem coragem."

Julia Hansen

19.6.17

Sintoma

qual o nome
disso
festa despertando
o cheiro
que ainda
não sentido
confinado na minha
teu hálito  pré dormido
assim um
nome   não dito
um lábio semi
vai chegando
dois
teu dedo cru
saindo do bolso
ardia suor 
antes    de cair
e do lado de dentro,
a espera
qual o nome disso?
a carne cheia
de desejo amanhecido:
esta noite vou te ver.

18.6.17

A arte de perder

A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

Elizabeth Bishop

17.6.17

imersa em uma
ilha esquizofrên
ica
a tradutora ben
ze portas
com o mesmo cut
elo que pica ceb
olas

16.6.17

Persona non protagona

Até quando vou sentir-observando?

uma ação a distância
que vive-e-vê
duvide-o-dó.

15.6.17

nada do que eu disser vai dar conta
o efeito quer o excesso
mas só tem falta
faz acontecer a sua
mas como
tem volta a volta
ou só preenche os cantos
sem desborde
que o desenho é de outro
se não disparo
morro na praia
espremo o cisto
tímido
e tremo
a arte de explodir
por estagnação
ao menos na minha cabeça.

14.6.17

"ontem eu tive esse sonho
nele encontrava com você
não sei se sonhava o meu sonho
ou se o sonho que eu sonhava era seu
um sonho dentro de um sonho
eu ainda nem sei se acordei
desse sonho que era imagem e som
pra saber o que foi que aconteceu"

Nação

13.6.17

contrição de nascença

as pessoas acham tudo
que eu sei o que estou fazendo.
mas só quem sabe mesmo é Ernesto.
desde o dia em que eu o conheci,
toda vez que a gente se fala,
ele me diz:
você está fazendo merda.
nunca achei ofensa.
sempre baixei os olhos e me calei
como quem diz
eu sei, eu sei.

12.6.17

a gente fica tudo na procura do botão do reset.
e às vezes nem lembra que a gente aperta esse botão todo dia de manhã, quando acorda.
e pede no mínimo mais uma soneca de cinco minutos.

11.6.17

dar vazão a vazão

mesmo que signifique

ficar às voltas

com o vazio

em minha cesta de vime.

5.6.17

"vamos colocar isso 
em termos de natação.
é como se na vida eu estivesse 
nadando, nadando, nadando 
enfrentando ondas muito altas
a piscina me salva 
de muitas situações opressoras
tem situações que são 
enlouquecedoras
se a gente sabe nadar 
é só nadar 200, 300 metros 
que aí já não sente mais nada 
não fica triste, não precisa chorar 
é como se tivesse lavado 
o cérebro por dentro"

nora ronai

4.6.17

ao calor que almejo

fartam-me o armário casacos usados 
poucas vezes para cada tipo 
de frio tenho um
o frio fresco
chuvoso
com riscos de tempestade
o frio que me é familiar
e aquele que vem do estrangeiro
para aqueles dias de nevasca que aqui nem cai 

guardo um especial
provo todos os invernos
em todas as estações
depois guardo-os e observo
entre todos
sempre me parece faltar
o casaco perfeito
ideal para o dia
e para a noite
em que me despirei dele
e do resto,
aos poucos
também.