27.2.17

lluvia

hoy llueve mucho, mucho,
y pareciera que están lavando el mundo
mi vecino de al lado mira la lluvia
y piensa escribir una carta de amor/
una carta a la mujer que vive con él
y le cocina y le lava la ropa y hace el amor con él
y se parece a su sombra/
mi vecino nunca le dice palabras de amor a la
mujer/
entra a la casa por la ventana y no por la puerta/
por una puerta se entra a muchos sitios/
al trabajo, al cuartel, a la cárcel,
a todos los edificios del mundo/ pero no al mundo/
ni a una mujer/ni al alma/
es decir/a ese cajón o nave o lluvia que llamamos así/
como hoy/que llueve mucho/
y me cuesta escribir la palabra amor/
porque el amor es una cosa y la palabra amor es otra cosa/
y sólo el alma sabe dónde las dos se encuentran/
y cuándo/y cómo/
pero el alma qué puede explicar/
por eso mi vecino tiene tormentas en la boca/
palabras que naufragan/
palabras que no saben que hay sol porque nacen y
mueren la misma noche en que amó/
y dejan cartas en el pensamiento que él nunca
escribirá/
como el silencio que hay entre dos rosas/
o como yo/que escribo palabras para volver
a mi vecino que mira la lluvia/
a la lluvia/
a mi corazón desterrado



Juan Gelman

12.2.17

ainda tenho o guardanapo
um par de livros
meia dúzia de cartas
poemas em duo fotos
e alguns outros papeis
de boba cantando nunca mais que dois
versos da mesma música
o resto era nananá
ou fim do ato
corte pra cena do
perdi seu número
perdi parte do meu nome.

para Ricardo,
mas ele sabe.

11.2.17

Esse olhar que vara o crisântemo

esse olhar é meu.
Esse olhar que vara o amarelo
esse olhar é meu.
Esse olhar que de noite
perpassa
a noite
o amarelo
o crisântemo
o olhar mesmo
esse é meu olhar.
Vem embebido
do dono
mas é seu próprio
é sozinho.
Esse olhar não tem
dono ou base:
o Monte Ajusco
a Cordilheira do Atlas.
Esse olhar vara
por si:
a flor varada
depois dele
desfolha-se.


Horácio Costa

7.2.17

Não vamos ao enterro do amor
Não vamos
Não vamos ao velório não há velas suficiente
não há horas não há lágrimas que me façam
acreditar que tal falecimento seja possível
Não vamos sentar na poltrona confortável ao lado do morto
que me faça ter vergonha de estar esperando sentada
a que me sirvam condolências de estranhos
familiares e parentes solitários que esperaram a vida inteira
por este momento
aquele segundo de vitória, eu reconheço, de eu vim, vi e venci, eu fui mais forte
que o amor
sempre tão débil e prepotente esse seu viver
não vamos, já disse, não vamos
não vamos receber abraços frios de pessoas frias
nem abraços quentes de pessoas quentes que deveriam estar em outro lugar
que gostariam de estar em outro lugar
me recuso a acreditar que deixaram de ir
para vir até aqui
por que? por que se ele nunca te amou, se ele nunca
por que
não vamos
não vamos esperar as moscas chegarem
não vamos esperar mais flores
não vamos aumentar o ar condicionado aumentar o chumaço de algodão nas narinas aumentar o tule
não vamos ouvir a missa não vamos mais ouvir um só eu sinto muito
por sua perda
não queremos mais ouvir um pio
não vamos nos agachar nos rebaixar a isso tomar um punhado de pedras
e terra não vamos selar o selado
atire você a primeira pedra
não vamos chorar
pelo leite derramado
dar outros passos em direção ao caixão e dizer adeus
não nos despediremos
não
eu digo que não vamos
eu me recuso a dizer fim.

5.2.17

Fernanda

Para se viver no presente, e para que esse presente contenha alguns germes de futuro,
 é preciso esquecer.
 Não digo perder a memória, mas seleccioná-la, distanciá-la, acomodá-la à necessidade
 que todos temos de
 saborear o presente, de manter indemnes as possibilidades de novos começos. Mas
 quando a memória nos
 cai em cima como um dilúvio, quando o passado nos submerge e afoga, estamos perdidos.
 Sobrevivemos
 entre sombras, somos almas penadas, entregues ao desespero e à cólera. Vivemos no inferno,
 pois inferno é
 a ausência de quem amamos.
É disso que este livro trata. Disso e da passagem da saudade à solidão.

Ernesto Sampaio

4.2.17

patuá

conheci um cara

um fica que o acusa
luvas e sapatilhas

no dia em que a conheci
vestígios de lágrimas, lenços
saudações & serpentinas

eu vestia branco e verde e ela
vermelho e cinza

até hoje(

dragões serpentes entrelaçados
quadros emoldurados
espada que voa

sinto que ainda não o conheço
nem isso

para tudo um começo e um
nem precisa pedir

mas vai além
valer-se de um símbolo
é pouca matéria
mais vale levar dentro um
mútuo
todas as cores se encontram num ponto perfeito depois do preto e)
infinito


Ellen Maria