4.7.20

Runkeeper

Passei a correr todos os dias
a reparar na mudança das cores da grama
do parque que seca até esturrica
de junho a outubro
no meio do cerrado
Passei a passar sempre às avessas
da direção das bicicletas
pensando por qual caminho será
que elas voltam
A avistar os ninhos dos quero-queros
os montes das corujas
as crias das curicacas
e os carcarás
que caçam qualquer coisa
mas não criam caso
nem quando vou voando entre eles
nem quando voo cansada
Passei a notas as árvores
pelo desenho de suas sombras
na pista, o sol pela quantidade de suor
que escorre, o vento
pela velocidade que ganho ou perco
numa reta, o quanto de atrito meço
pelo pace que me avisam meus pés nas subidas
e nas descidas que sempre permito tirar vantagem
da gravidade
Passei a descansar no final dos quilômetros
deitada no gramado sem preocupação
quanto às formigas que estão embaixo ou aqueles que ainda treinam
e me vem de cima, corpo estatelado feito estrela
de cinco pontas na terra
Eu só fecho os olhos e relaxo
E neste momento, só vejo o dentro
observo meu próprio céu
e centro
e às vezes também
partes suas
suas pernas, seu sorriso
seus olhos pequenos
aquilo que eu conheço
meu outro parque
onde não preciso ir correndo
porque cada curva, centímetro
superfície, pedaço
passa a ser o início
e a minha linha de chegada.

Para L.

14.6.20

OVNIs

O complexo de águas termais de Vitória está fechado. Três cachorros de rua dormem sobre as pedras brancas na frente da entrada. A guarita com a bilheteria está vazia e um velho cartaz diz que naquele dia o parque permanecerá fechado ao público. Não nos importa porque só estamos parados ali para estacionar o carro. A pousada onde vamos ficar se localiza atravessando a estradinha, uns duzentos metros para dentro no campo. O caminho é na verdade uma rua de terra que parece mais um pântano, por causa das últimas chuvas, e o dono nos aconselhou que fôssemos andando a pé para lá desde aquele ponto.
Mal deixamos o carro e uma nuvem de mosquito cai sobre nós. Como temos as mãos ocupadas com nossas coisas, só nos resta mexer o corpo e cabeça, como epilépticos, para assustá-los com o movimento. 
Viemos a Vitória para conhecer o Museu OVNI. Deixamos nossas coisas na pousada e voltamos a caminhar os duzentos metros até o carro. Nos recomendaram um restaurante de frutos do mar no porto. Comemos pasteis de pescado e um peixe chamado piapara, na brasa. Fazemos hora até a hora do museu abrir. Pelo menos é o que verifiquei na internet, que, aos sábados, só abre às quatro da tarde. Mas sei lá, vai saber, me disse o cara da pousada: às vezes abre, às vezes não. Quando estamos chegando, me acelera o coração: armei essa expedição só para vir ao Museu OVNI, e se está fechado, a viagem, os mosquitos, o lamaçal, e tudo o mais não será nada além de um tremendo incômodo, para absolutamente nada. Alguém corre na frente e da esquina nos diz aliviado: está aberto.
Silvia, a diretora do museu, é uma mulher de uns setenta anos, com o cabelo tingido de loiro e com óculos de armação bem grossa. Ela nos recebe em uma mesa e nos cobra 35 pela entrada, a cada um. Nos adverte que antes de qualquer coisa, vai nos exibir um vídeo institucional e pede que sentemos em umas cadeira diante de uma TV de plasma. Coloca o dvd e nos deixa com uma filmagem copiada do telejornal do canal de Crespo, onde ela mesma é entrevistada. Da TV nos explica por que existe o museu, por que os extraterrestres escolheram a cidade de Vitória, porque ela escolheu deixar todas as comodidades de uma vida de mãe e esposa junto a um engenheiro em Vila Devoto para se mudar para aqui, com uma mão na frente e outra atrás. Enquanto ela conta, a música dos Expedientes X toca de fundo e às vezes até assume o primeiro plano cobrindo sua voz. Quando termina o vídeo, estamos liberados para percorrer as instalações: é a garagem de uma casa e um pouco mais: as paredes cheias de recortes de jornais, fotos de animais com as tripas para fora, círculos secos nas plantações, pedaços de metal, e uma dramatização com bonecos de tamanho natural do caso Roswell.
Quando saímos, começa a entardecer e vamos até o morro da Matanza. De lá, de frente para a Lagoa do Pescado, dizem que é possível ver as luzes, é o lugar das visões e das aparições. O céu está alaranjado e vai escurecendo tom a tom, até se fazer de noite. Vemos uma luz se levantar sobre a lagoa e se mover de um lado para o outro, por momentos parece até vir em direção a nós e depois volta a se afastar.
Maxi, que já veio várias vezes, nos conta que aqui Silvia festeja todos os seus aniversários, em dezembro. Costuma vir uns cem ou duzentos ufólogos de todas as partes, amizades que ela foi fazendo em seus anos de encontros e de aparições. Uma vez ele mesmo veio. A festa parecia uma rave rural, infestada de personagens estranhos, todos bebendo cerveja e vinho, alguns tocando violão. Em um determinado momento, ele foi buscar mais uma cerveja, e encontrou a Silvia, encostada no balcão, de costas para a festa, tomando uma lata de Brahma, em uma aparição íntima, cerimoniosa, só para ela.

Selva Almada
Tradução: Ellen Maria

13.5.20

insones

críamos que
éramos 
jovens ases
mas as idades passam como as horas
não se nota 
quando deixamos de ser para estar 
fazendo conta
até que um dia você adolescente
me pergunta sobre o destino
dos que deixam 
de sonhar
eu te respondo
sem tirar os olhos
do que nem assisto
que disso não faça caso
e te prometo que um dia 
ele também deixará de ser seu

depois sozinho
inicio um pensamento
quando foi que
isso aconteceu

já nem me lembro.

3.5.20

ao combate

face ao silêncio,
pulsa
levando a personagem ao encontro
das armas,
tesouros
- passo
mortos os inimigos
na sala escura

nada disso tem ou faz
tanto sentido
quanto ao resto da história,
parece
um passado em falso
no que já é
quase o fim
do jogo

essa é uma fase sem
nenhum tipo de som
- nota
o que faz com que seja
tudo mais
dificultoso

passos
lentos

o sabre dilacera
orientado
dois toques apenas
e volta ao cavalo

este, de certo,
devia ser
o último

espreita
outras salas
           nada
mas o vazio previsa
a descoberta

caminha
com olhos nas costas
se vira e
em um jogo de câmeras
- muito bem desenhado -
mostra o motivo para seguir

famílias inteiras
putamerda-olhoarregalado

pausa

respira

larga um pouco o controle
fuma um cigarro
um gole d'água

aqui é onde paramos
e decidimos

ir com tudo
para o chefão.

27.4.20

mais um lapso

Eu tenho medo
que eu desapareça
não só por um tempo
o que já é uma ideia ruim
mas totalmente compreensível
que você se esqueça de mim por um par de semanas
faz parte do rebuliço diário
um esboço efêmero do que seria ser um corpo finado

mas pelo bem da verdade
ninguém quer ser visto ou lembrado
o tempo todo
nenhum homem ou mulher
merece sofrer de lucidez eterna
(um viva aos lapsos mnemônicos)
até eu mesma me escondo
de mim mesma às vezes
e também me esqueço tantas vezes
perdida em outros trajetos
mais interessantes

o que é curioso pensar:
a consciência como algo que nos impomos
para lembrar de si e não se perder
para sempre nos outros
nos percursos entre as palavras e as coisas

mas só de pensar já me estremece
a ideia de desaparecer
não o corpo (este
o perdemos sem nenhum mistério)
mas o pensamento
que você me perca
que eu não exista em nenhum
pensamento

o para sempre mesmo
não me interessa
ninguém vive para sempre
nem mesmo as obras primas das obras
são primas para todas

o para sempre real mesmo
nem realmente existe
o planeta não dura esse tanto
e o tempo é uma teoria que não resiste
fora do nosso contexto histórico

(li em algum lugar
que o calendário dos despertos
é tão arbitrário quanto o tempo dos sonhos
para quem está dormindo é outro regimento
ainda que o corpo por dentro siga contando
para outras tribos é outra coisa)

o que eu estava dizendo
é que tenho medo que eu desapareça
mas não é nem bem isso
ou mas não é só isso
porque eu posso não desaparecer
mas me converter em outra coisa
uma vez falamos sobre a possibilidade
era uma lei da física
o corpo que se desintegra e vira adubo
para outra matéria
e nada é como antes

tampouco quero ser certo tipo de lembrança
como cada vez que você pensa no seu passado
(e nós não pensamos nele tanto assim
porque a vida é mesmo urgente)
quando você pensa nos livros que leu
no período de tanto a tanto dos anos x e x+1
vem uma notinha do editor ao pé da página
para o período em que ela
- no caso eu -
também esteve lá

os livros emboloram
(vivemos num país úmido)
e caem para outras prateleiras
e se perdem voluntariamente
entre caixas de mudança
ou às vezes desejamos
com toda nossa vontade
que um livro se perca sozinho
e ele se perde como países

tem as teorias que caem também
em desuso porque nascem outras
que combinam melhor com o novo tempo
um pensamento muito capitalista e enciclopédico
um pensamento muito de seu tempo

daí também existe ainda outro risco
que na verdade é o risco mais provável
que eu seja substituída
e isso já é praticamente uma consequência
do meu desaparecimento
uma substituição é atributo
de quem aparece o tempo todo
ou ao menos
muito mais tempo do que eu presumo

que meu medo é um medo justo
e tal como são todos os medos
ele desaparece às vezes
quando me vejo em algum verso
de algum texto seu
e ganho forma

e aí me vem um pensamento
o contrário de medo não é coragem
mas convicção
de que eu ainda existo
de que eu não desapareci
e nesse momento
eu volto a ocupar a fileira
da biblioteca que fica bem diante
dos meus e seus olhos (úmidos)

todo medo é genuinamente
pessoal e intransferível
e por isso a convicção é tão tola
quanto o próprio medo

meu medo
é que eu deixe de ocupar
um espaço e um tempo
como às vezes se deixa
de acreditar na ideia
do amor infinito
uma utopia é sempre baseada na realidade
apesar de tudo o que em contra
já foi dito e feito

o meu medo do desaparecimento parece
(como tudo o que nos move
não pra frente mas pra cima)
sem querer querendo mais um desejo
de mesmo que mínimo, mas não mísero
de vez em quando ainda
te causar um assombro
um arrombamento.

25.4.20

Rachar átomos e depois

Enquanto a maioria das pessoas que ela conhecia seguia pareando-se semanalmente com desconhecidos provindos de aplicativos, apesar do já acumulado número de fiascos encontros, fabricados propositalmente por algoritmos promotores não da formação de amores perfeitos, mas da elevação dos níveis de desconforto na autoimagem e de transtorno de ansiedade para expandir o comércio de cosméticos e fármacos e ampliar a busca de lojas e psiquiatras conveniados, Luisa cicatrizava suas fissuras com maçarico, ao ponto de quase esquecer a diferença entre vinco e abismo, e ia atrás de outros tipos de pequenas mortes – blocos de ficção, doses líquidas de adrenalina e asfaltos amortecidamente socados – para que também não adoecesse do mal do século: o excesso de realidade. Porém, em uma tarde de narizes secos e espargimento de cinzas pelas casas de janelas abertas, Luisa, entediando-se de informações estéreis enquanto lustrava telhados alheios pelas tradicionais redes sociais, acabou se deparando com o que deu a alcunha de possível-vingança-do-mundo, uma reparação doméstica e vulgar aos olhos da comunidade de punhos calejados, mas que a ela lhe serviria como chave de um portão emperrado que ela dava por saltar ou ignorar há tempos ao invés de abrir. E a solução parecia simples, um transcendente óleo, aquele que ela mesma, feita de material divino, produzira involuntariamente em anos passados e em companhias diversas, mas que até a data não tivera chance de estudar a função automática a seu próprio benefício, apesar da farta biblioteca que conservava em um dos cômodos de sua casa. Seria o fim do pacto de silêncio, e, portanto, tal Kaspar Hausen, o que se iniciava ali era uma aprendizagem lenta e paulatina. Já em mãos do suporte necessário para descobrir o que sempre precisou e nunca soubera, assim como objetivam as novas lojas japonesas de miniaturas, acessórios e decoração, de costas ao pano que lhe acomodava todas as noites, almejou um sonho consciente e guiado, conforme fora concedido aos mortais pós-maçã condenatória, ou talvez a história não fosse essa. Com hastas recém-aparadas, iniciou o mergulho ao pré-sal em potencial, com toda a equipe técnica a postos para que a viagem fosse não só executada com sucesso, mas que o trajeto fosse minuciosamente registrado para trabalhos de campo posteriores. O percurso ia com forma, planejado, até que uma turbulência não aguardada fizera com que a torre de controle perdesse o sinal da aeronave e, a partir desse evento, a que se pretendia comissária até o fim da prática tivera que assumir a função de protagonista da missão sem mapa e sem precedentes. Pouco depois da atribuição, Luisa então presenciou o que, segundo pesquisas, era conhecido como chuva de meteoros. Aquela ocorrência que se travava diante de si fizera que o material salgado excedente da fonte, agora já reconhecida como inesgotável, vertesse por seus orifícios oculares, e, sem leituras anteriores que a prevenissem disso, sentiu finalmente estar só, nada mais que só, por uns segundos que duraram incontáveis anos-luz. Desabou, sem que pudesse dominar o impacto. Era a ruína de um corpo. Mas também a descoberta dele.


24.4.20

Esfoliar

jogar o que precisa ralo abaixo
permanecer um pouco mais
com ela debaixo das unhas

mas antes
sentir o chamado
estar em frente à mesa
enfrentando um texto
o que quer que seja
cutucando as espinhas
os folículos esgarçados
a superfície invadida e exausta

chegado o momento
do preparo da pasta
algo cremoso e frio
algo quente e granulado
com fruta e propriedades
que costumam ser consumo
do lado de dentro

lava-se o rosto
se olha nos olhos do espelho
e se encara sem parar
pra pensar na mediocridade da cena
da fracassada exigência de livrar-se

lambuza-se com vera vontade
deixando apenas os buracos da cara de fora
respira-se menos e espera
com um tolo anseio de reparo

volta-se ao texto
já sabendo que não poderá voltar integralmente a ele
não funciona a atenção plena
quando se planeja escrever e fazer
uma limpeza de pele

ao rever-se no espelho
esfrega-se a face com os dedos
uma lenta e violenta leitura em braile
e os grãos esfolam o que parecia
ou realmente era encravado

fecha-se os olhos
respira-se ainda menos

agora sim
certificar-se que dessa vez foi
ralo abaixo
e o espólio debaixo das unhas

sempre o desejo de tomar água
o reflexo interno do arremate
sensação similar a lavar o banheiro
e querer se banhar em seguida

respira-se finalmente fundo
com a firmeza do corpo
de manter o copo ante a gravidade
da cozinha direto à mesa

e, vida nova em folha,
volta-se ao texto

repetir semanalmente
ou cada vez que lembra dela
torna-se um hábito oblíquo
de pensar no que resta.


23.4.20

como se faz

um corpo, quando ainda é homem
movimenta as pernas para elevar-se
nas escadas finais do prédio mais alto
que sua história lhe permitiu conhecer 
enquanto em seu rosto se nota a certeza 
uma das mãos busca o celular no bolso da calça 
encontrando-o no penúltimo lance de degraus momento 
em que os olhos agora nunca tão abertos já se deparam 
com o terraço e avistam a claridade do parapeito
o abismo a faixa de partida
e disca um número de memória aquela
que será a última chamada
de sua vida finalmente 
um de seus ouvidos se atenta
em distinguir o tom da espera
seus pés se encaminham ao destino que resta no instante 
em que um telefone toca em qualquer parte
e passando a porta enxerga
mais alguém ali
fumando
distraído
e o que era pra ser 
podia ainda assim ter sido
mas era outro
o desejo renovado
pedindo um cigarro
e se afogando em prantos
ajuda o homem
que não quis mais ser corpo
faz
sua história
de outra maneira
antes que alguém atenda.

20.4.20

Que escapam

Todo dia normal
eu fico a morder cotovelos
a passar pomada nas orelhas
a fingir que não vejo
a rezar para que isso passe

Nos outros dias
eu bebo muito
e falo mal dela
espremo espinhas no nariz
enquanto espero que isso passe

como se não soubéssemos
como se em silêncio
não implorássemos
para que os sentidos se inundem
e se escapem
como se arrancassem o abrigo
de um morto.

19.4.20

A vida é mesmo

Numa conversa de bar
em plena augusta
sem filtro para minimizar o embate
me lança o inquisidor
uma dúvida e se cala
qual a originalidade do poeta do século um
mais vinte
que toma açaí no café
e googlea sobre o lundu,
o caçanje, a receita de angu
e nem sabe o que é bagé
Como não entro nessa gira
porque nunca joguei capoeira
agradeço humildemente à pergunta difícil
e num gesto de deixa disso
ajeito meus óculos como quem diz
que aceito ser menos índio que ele
e pingo na mandioca frita que dividimos
um pimento que trouxe da estranja
Me sabe mais rico, não posso negar
E ainda que eu sinta em seu riso uma pena
da poetinha
não me enquizilo com meu amigo
poeta é tudo só
e refugiado
também é aquele
que atravessou o istmo
quando o oceano ainda
era um charco.

7.4.20

outra vez

outra vez, despejo
o poema se encharca

hoje eu
soube
a perda da razão
o início de outra

daí pensei
sobre a queda
seus olhos não se despediram
porque se ficasse
seríamos
eu e você
outra vez -
juntos
cuidando dela
- sabemos
sempre soubemos

eu digo
- seu nome
você não se vira
meus olhos abertos pedindo
- o quê
você sabia

que eu não
nunca
deixasse de

estar

não tem
mais
mas deixa
essa música
tocar

um desejo
ou a mão leve
que despeja
sem pedir nada em
troca

um deus encharcado
de lágrimas
me pediu pra fazer
você ir embora

para que eu pudesse
cuidá-la

dessa vez.