25.4.20

Rachar átomos e depois

Enquanto a maioria das pessoas que ela conhecia seguia pareando-se semanalmente com desconhecidos provindos de aplicativos, apesar do já acumulado número de fiascos encontros, fabricados propositalmente por algoritmos promotores não da formação de amores perfeitos, mas da elevação dos níveis de desconforto na autoimagem e de transtorno de ansiedade para expandir o comércio de cosméticos e fármacos e ampliar a busca de lojas e psiquiatras conveniados, Luisa cicatrizava suas fissuras com maçarico, ao ponto de quase esquecer a diferença entre vinco e abismo, e ia atrás de outros tipos de pequenas mortes – blocos de ficção, doses líquidas de adrenalina e asfaltos amortecidamente socados – para que também não adoecesse do mal do século: o excesso de realidade. Porém, em uma tarde de narizes secos e espargimento de cinzas pelas casas de janelas abertas, Luisa, entediando-se de informações estéreis enquanto lustrava telhados alheios pelas tradicionais redes sociais, acabou se deparando com o que deu a alcunha de possível-vingança-do-mundo, uma reparação doméstica e vulgar aos olhos da comunidade de punhos calejados, mas que a ela lhe serviria como chave de um portão emperrado que ela dava por saltar ou ignorar há tempos ao invés de abrir. E a solução parecia simples, um transcendente óleo, aquele que ela mesma, feita de material divino, produzira involuntariamente em anos passados e em companhias diversas, mas que até a data não tivera chance de estudar a função automática a seu próprio benefício, apesar da farta biblioteca que conservava em um dos cômodos de sua casa. Seria o fim do pacto de silêncio, e, portanto, tal Kaspar Hausen, o que se iniciava ali era uma aprendizagem lenta e paulatina. Já em mãos do suporte necessário para descobrir o que sempre precisou e nunca soubera, assim como objetivam as novas lojas japonesas de miniaturas, acessórios e decoração, de costas ao pano que lhe acomodava todas as noites, almejou um sonho consciente e guiado, conforme fora concedido aos mortais pós-maçã condenatória, ou talvez a história não fosse essa. Com hastas recém-aparadas, iniciou o mergulho ao pré-sal em potencial, com toda a equipe técnica a postos para que a viagem fosse não só executada com sucesso, mas que o trajeto fosse minuciosamente registrado para trabalhos de campo posteriores. O percurso ia com forma, planejado, até que uma turbulência não aguardada fizera com que a torre de controle perdesse o sinal da aeronave e, a partir desse evento, a que se pretendia comissária até o fim da prática tivera que assumir a função de protagonista da missão sem mapa e sem precedentes. Pouco depois da atribuição, Luisa então presenciou o que, segundo pesquisas, era conhecido como chuva de meteoros. Aquela ocorrência que se travava diante de si fizera que o material salgado excedente da fonte, agora já reconhecida como inesgotável, vertesse por seus orifícios oculares, e, sem leituras anteriores que a prevenissem disso, sentiu finalmente estar só, nada mais que só, por uns segundos que duraram incontáveis anos-luz. Desabou, sem que pudesse dominar o impacto. Era a ruína de um corpo. Mas também a descoberta dele.


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