"A arte incorpora algo como liberdade no seio da não-liberdade. O fato de, por sua própria existência, desviar-se do caminho da dominação a coloca como parceira de uma promessa de felicidade, que ela, de certa maneira, expressa em meio ao desespero. mesmo nas peças de Beckett, a cortina se levanta como num cenário de Natal."
Adorno
31.7.16
30.7.16
insídia
não é o tempo inimigo
senão minado
de esperança míngua
a emoção sentida
o tempo não retorna
tudo é entropia
já dizia
Ellen Maria
senão minado
de esperança míngua
a emoção sentida
o tempo não retorna
tudo é entropia
já dizia
Ellen Maria
28.7.16
já digo
quem acredita
que vivo à moda
da lua
confia que não vou
nem fico
não sou minha
nem só sua
se muito eu fujo
se pouco eu grito
depois descanso
no sétimo dia
minto
e durmo nua
você de abrigo
Ellen Maria
que vivo à moda
da lua
confia que não vou
nem fico
não sou minha
nem só sua
se muito eu fujo
se pouco eu grito
depois descanso
no sétimo dia
minto
e durmo nua
você de abrigo
Ellen Maria
27.7.16
26.7.16
25.7.16
era
não há pé direito mais alto
joia barroca tão rara
que o céu da sua boca
impossível
por mais trabalho que eu faça
filigrana
aprenda a forjar
já não há cúpula
ou língua neste mundo
que nos faça feixe
somos descontínuos
sem altar,
subo as escadas e caibo
em meu apartamento
o efeito volta e desaparece
várias vezes só
no mês de julho.
joia barroca tão rara
que o céu da sua boca
impossível
por mais trabalho que eu faça
filigrana
aprenda a forjar
já não há cúpula
ou língua neste mundo
que nos faça feixe
somos descontínuos
sem altar,
subo as escadas e caibo
em meu apartamento
o efeito volta e desaparece
várias vezes só
no mês de julho.
23.7.16
Não tenho a antiga ternura
"Não tenho a antiga ternura pelo meu corpo
mas o tolero como um animal de carga
que é útil apesar de exigir muitos cuidados
e traz dor e alegria e dor e alegria
às vezes fica imóvel de tanto prazer
e às vezes serve de abrigo ao sono
conheço os seus corredores inuosos
sei por qual deles chega o cansaço
e quais tendões o riso estica
e lembro do gosto único de lágrimas
tão parecido com o de sangue
os meus pensamentos-- um bando de pássaros assustados
eles alimentam-se do campo do meu corpo
não tenho para ele a antiga ternura
mas sinto mais forte do que antes
que não alcanço nada além das minhas mãos esticadas
e nada acima daquilo ao qual me levantam as pontas dos meus pés
Halina Poswiatowska, trad: Magdalena Nowinsk
mas o tolero como um animal de carga
que é útil apesar de exigir muitos cuidados
e traz dor e alegria e dor e alegria
às vezes fica imóvel de tanto prazer
e às vezes serve de abrigo ao sono
conheço os seus corredores inuosos
sei por qual deles chega o cansaço
e quais tendões o riso estica
e lembro do gosto único de lágrimas
tão parecido com o de sangue
os meus pensamentos-- um bando de pássaros assustados
eles alimentam-se do campo do meu corpo
não tenho para ele a antiga ternura
mas sinto mais forte do que antes
que não alcanço nada além das minhas mãos esticadas
e nada acima daquilo ao qual me levantam as pontas dos meus pés
Halina Poswiatowska, trad: Magdalena Nowinsk
21.7.16
Cinco canções lunares
"Sobre os cotovelos a água olha o dia sobre
os cotovelos. Batem as folhas da luz
um pouco abaixo do silêncio. Quero saber
o nome de quem morre: o vestido de ar
ardendo, os pés em movimento no meio
do meu coração. O nome:
madeira que arqueja, seca desde o fundo
do seu tempo vegetal coarctado.
E, ao abrir-se toalha viva, o
nome: a beleza a voltar-se para trás, com seus
pulmões de algodão queimando.
Uma serpente de ouro abraça os quadris
negros e molhados. E a água que se debruça
olha a loucura com seu nome: indecifrável, cego."
Herberto Helder
os cotovelos. Batem as folhas da luz
um pouco abaixo do silêncio. Quero saber
o nome de quem morre: o vestido de ar
ardendo, os pés em movimento no meio
do meu coração. O nome:
madeira que arqueja, seca desde o fundo
do seu tempo vegetal coarctado.
E, ao abrir-se toalha viva, o
nome: a beleza a voltar-se para trás, com seus
pulmões de algodão queimando.
Uma serpente de ouro abraça os quadris
negros e molhados. E a água que se debruça
olha a loucura com seu nome: indecifrável, cego."
Herberto Helder
20.7.16
Cântico XV
"Não queiras ser.
Não ambiciones.
Não marques limites ao teu caminho.
A eternidade é muito longa.
E dentro dela tu te moves, eterno.
Sê o que vem e o que vai.
Sem forma.
Sem termo.
Como uma grande luz difusa.
Filha de nenhum sol."
Cecília Meireles
Não ambiciones.
Não marques limites ao teu caminho.
A eternidade é muito longa.
E dentro dela tu te moves, eterno.
Sê o que vem e o que vai.
Sem forma.
Sem termo.
Como uma grande luz difusa.
Filha de nenhum sol."
Cecília Meireles
17.7.16
impiedade
amanhece
me visto outra vez
com os segredos que nenhuma luz revela
olho algum tampouco confessa
o que refletiu
o que refletiu
sob o sol, nada de novo
a mesma tela branca sobre a boca
cala as descobertas da noite
somente o espelho
julgador
julgador
em frente à cama
me encara no tempo seguinte
me encara no tempo seguinte
só ele sabe quantos desvelos
e a qualidade do sono
só ele me fala
sobre o que nunca quis
ter vivido
sobre o que nunca quis
ter vivido
e me afirma escancarado
o que eu sempre soube.
o que eu sempre soube.
16.7.16
Mudança de idade
"para explicar
os excesso do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mdança de idade.
na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantava estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
a tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores noturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer. "
Mia Couto.
os excesso do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mdança de idade.
na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantava estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde já não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
a tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores noturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me,
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba o tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer. "
Mia Couto.
15.7.16
fuck
"pienso: si yo hubiera
tenido hijos
en qué idioma les hubiera
hablado?
cuál habría reprimido?"
Sylvia Molloy. Vivir entre lenguas.
tenido hijos
en qué idioma les hubiera
hablado?
cuál habría reprimido?"
Sylvia Molloy. Vivir entre lenguas.
14.7.16
viro a casaca
de fora eu vejo melhor
de dentro
com os ouvidos tapados
não pesco nem mosca
passo a língua nos dentes
de boca fechada
também não entra
mais nada nessa casa vazia
cheia de lembranças mortas
eu mudo e as embaralho todas
um novo casamento
com a memória
ainda tenho as janelas abertas
tanta brisa
boa pra secar roupa
já joguei tanta coisa
mas ainda faltam
umas poucas linhas
e eu não vejo a hora
Ellen Maria
de dentro
com os ouvidos tapados
não pesco nem mosca
passo a língua nos dentes
de boca fechada
também não entra
mais nada nessa casa vazia
cheia de lembranças mortas
eu mudo e as embaralho todas
um novo casamento
com a memória
ainda tenho as janelas abertas
tanta brisa
boa pra secar roupa
já joguei tanta coisa
mas ainda faltam
umas poucas linhas
e eu não vejo a hora
Ellen Maria
13.7.16
12.7.16
prosa mínima poesia
fazer trinta e absorver
a consciência como informação
de que coisas belas
pessoas que emocionam
e experiência estética
são raras e
pela mesma razão
devem ser furiosamente
conservadas
Ellen Maria
a consciência como informação
de que coisas belas
pessoas que emocionam
e experiência estética
são raras e
pela mesma razão
devem ser furiosamente
conservadas
Ellen Maria
11.7.16
"Juntar a grandeza ou os esplendores de uma ideia no cerco burilado de uma boa combinação de letras; conseguir, não escrever como os papagaios falam, mas falar como as águias calam; ter luz e cor em uma engrenagem aprisionar o segredo da música na armadilha de prata da retórica, fazer rosas artificiais que cheiram a primavera, eis o mistério."
Rubén Darío
10.7.16
quem casa quer casa
firmar contrato novo
tem algo de gosto velho
na garganta as cordas vibram
o mesmo nome
assina
tente daqui a trinta meses
outro anúncio dizer.
Ellen Maria
tem algo de gosto velho
na garganta as cordas vibram
o mesmo nome
assina
tente daqui a trinta meses
outro anúncio dizer.
Ellen Maria
9.7.16
o terror
"até cada objecto se encher de luz e ser apanhado
por todos os lados habéis, e ser ímpar,
ser escolhido,
e lampejando do ar à volta,
na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos juntos
como para escrever cada palavra:
pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja:
um copo de água,
tudo pronto para que a luz estremeça:
o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima
tão súbito e implacável na vida administrativa."
Herberto Helder in Servidões
por todos os lados habéis, e ser ímpar,
ser escolhido,
e lampejando do ar à volta,
na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos juntos
como para escrever cada palavra:
pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja:
um copo de água,
tudo pronto para que a luz estremeça:
o terror da beleza, isso, o terror da beleza delicadíssima
tão súbito e implacável na vida administrativa."
Herberto Helder in Servidões
8.7.16
[...]
"[...]
As crianças que há no mundo, vindas de lunações de objectos
potentes, fechados,
pulsando,
suspensas pela alumiação que as toma braço a braço;
que têm a despontar nas costas
um astro de basalto do seu tamanho.
Refulgem pela boca, ouvem vozes.
Devoram um alimento ardente.
Dormem.
Só é preciso pensá-las, vê-las, pô-las
à mesa com as mãos sobre a toalha, entre facas,
louça, carne
tóxica. Ousoprá-las para que divaguem numa força de ar.
Transmutavam-se.
Que transparência no sono, que ciência.
Alguém as encontrou, não falam, queimam-nas
o combustível astral, a nutrição
violenta. A sua arte monstruosa
é a atenção nos dedos:
separar pelas fendas os planetas,
torso mais torso, membros altos, o cérebro selados de todos
os mortos. Mostram
isso: que a arte que dá a vida
mata.
Ininterruptas. Assombrosas. Contempladas.
[...]".
Herberto Helder
As crianças que há no mundo, vindas de lunações de objectos
potentes, fechados,
pulsando,
suspensas pela alumiação que as toma braço a braço;
que têm a despontar nas costas
um astro de basalto do seu tamanho.
Refulgem pela boca, ouvem vozes.
Devoram um alimento ardente.
Dormem.
Só é preciso pensá-las, vê-las, pô-las
à mesa com as mãos sobre a toalha, entre facas,
louça, carne
tóxica. Ousoprá-las para que divaguem numa força de ar.
Transmutavam-se.
Que transparência no sono, que ciência.
Alguém as encontrou, não falam, queimam-nas
o combustível astral, a nutrição
violenta. A sua arte monstruosa
é a atenção nos dedos:
separar pelas fendas os planetas,
torso mais torso, membros altos, o cérebro selados de todos
os mortos. Mostram
isso: que a arte que dá a vida
mata.
Ininterruptas. Assombrosas. Contempladas.
[...]".
Herberto Helder
6.7.16
Mogli
"O dia começava a amanhecer quando Mogli desceu pela encosta da montanha, sozinho, ao encontro daquelas coisas misteriosas chamadas homens".
Rudyard Kipling
Rudyard Kipling
5.7.16
O lado de fora
"Eu não procuro nada em ti,
nem a mim próprio, é algo em ti
que procura algo em ti
no labirinto dos meus pensamentos.
Eu estou entre ti e ti,
a minha vida, os meus sentidos
(principalmente os meus sentidos)
toldam de sombras o teu rosto.
O meu rosto não reflecte a tua imagem
o meu silêncio não te deixa falar,
o meu corpo não deixa que se juntem
as partes dispersas de ti em mim.
Eu sou talvez
aquele que procuras,
e as minhas dúvidas a tua voz
chamando do fundo do meu coração."
Manuel António Pina
nem a mim próprio, é algo em ti
que procura algo em ti
no labirinto dos meus pensamentos.
Eu estou entre ti e ti,
a minha vida, os meus sentidos
(principalmente os meus sentidos)
toldam de sombras o teu rosto.
O meu rosto não reflecte a tua imagem
o meu silêncio não te deixa falar,
o meu corpo não deixa que se juntem
as partes dispersas de ti em mim.
Eu sou talvez
aquele que procuras,
e as minhas dúvidas a tua voz
chamando do fundo do meu coração."
Manuel António Pina
4.7.16
vida:
"Não me abati e nem senti desânimo. A vida é vida em qualquer lugar, a vida está em nós mesmos e não fora de nós. Ao meu lado há pessoas, e permanecer sempre, quaisquer que sejam os infortúnios, sem perder a coragem e cair no desânimo - eis em que consiste a vida, em que consiste seu objetivo".
Fiodor Dostoievsky. Recordações da casa dos mortos.
Fiodor Dostoievsky. Recordações da casa dos mortos.
3.7.16
Travessia
faz um santo
milagre outra vez
não que eu acredite
que las hay las hay
mas foi um anjo de sonho quem me disse
...haverá um dia um dia
ele era um homem um homem...
e eu passei a procurar
em todos os olhos
algum brilho refletido dos meus pares
pá e areia, construção
tanto sol secando as roupas
faz todos os dias duvidar
que em outra parte do mundo
chove
e quando a noite chegou pensei
as gotas pequenas também encharcam
e meu coração inchou
de esperança
quem sabe,
quem sabe.
Ellen Maria
milagre outra vez
não que eu acredite
que las hay las hay
mas foi um anjo de sonho quem me disse
...haverá um dia um dia
ele era um homem um homem...
e eu passei a procurar
em todos os olhos
algum brilho refletido dos meus pares
pá e areia, construção
tanto sol secando as roupas
faz todos os dias duvidar
que em outra parte do mundo
chove
e quando a noite chegou pensei
as gotas pequenas também encharcam
e meu coração inchou
de esperança
quem sabe,
quem sabe.
Ellen Maria
2.7.16
ela
"tenho visto cada vez mais nos meus pés os pés da minha mãe, suas mãos nas minhas. nos meus gestos de cortar, misturar vegetais: ela. tenho medo e me assombro. quanto do que sou sou eu e quanto do que sou é esta antiga linhagem que em mim se prolonga e atravessa? mãe, avós e uma das bisavós conheci. algumas tias, uns tios. e os que vieram antes de mim, os que mal sei? cada pedaço meu é de um outro? um quebra-cabeça que também eu preencho ou só faço recompor, agora que é minha vez, num eterno montar e desmontar reorganizando as peças? fomos sempre as mesmas peças? e em que momento a matéria orgânica enfim respira e admira as folhas que caem, o sol que nasce, a dor do outro. em que momento vira mão da mãe nos acariciando o rosto na hora da febre? desde sempre na minha mão, a mão dela, como um segredo: dentro."
v. paulics
1.7.16
corpo fechado
finca a estaca
na fechadura
e gira
pra ver se abre
se estanca
a ferida
ou se cai
finalmente
a ficha.
Ellen Maria
na fechadura
e gira
pra ver se abre
se estanca
a ferida
ou se cai
finalmente
a ficha.
Ellen Maria
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