27.4.20

mais um lapso

Eu tenho medo
que eu desapareça
não só por um tempo
o que já é uma ideia ruim
mas totalmente compreensível
que você se esqueça de mim por um par de semanas
faz parte do rebuliço diário
um esboço efêmero do que seria ser um corpo finado

mas pelo bem da verdade
ninguém quer ser visto ou lembrado
o tempo todo
nenhum homem ou mulher
merece sofrer de lucidez eterna
(um viva aos lapsos mnemônicos)
até eu mesma me escondo
de mim mesma às vezes
e também me esqueço tantas vezes
perdida em outros trajetos
mais interessantes

o que é curioso pensar:
a consciência como algo que nos impomos
para lembrar de si e não se perder
para sempre nos outros
nos percursos entre as palavras e as coisas

mas só de pensar já me estremece
a ideia de desaparecer
não o corpo (este
o perdemos sem nenhum mistério)
mas o pensamento
que você me perca
que eu não exista em nenhum
pensamento

o para sempre mesmo
não me interessa
ninguém vive para sempre
nem mesmo as obras primas das obras
são primas para todas

o para sempre real mesmo
nem realmente existe
o planeta não dura esse tanto
e o tempo é uma teoria que não resiste
fora do nosso contexto histórico

(li em algum lugar
que o calendário dos despertos
é tão arbitrário quanto o tempo dos sonhos
para quem está dormindo é outro regimento
ainda que o corpo por dentro siga contando
para outras tribos é outra coisa)

o que eu estava dizendo
é que tenho medo que eu desapareça
mas não é nem bem isso
ou mas não é só isso
porque eu posso não desaparecer
mas me converter em outra coisa
uma vez falamos sobre a possibilidade
era uma lei da física
o corpo que se desintegra e vira adubo
para outra matéria
e nada é como antes

tampouco quero ser certo tipo de lembrança
como cada vez que você pensa no seu passado
(e nós não pensamos nele tanto assim
porque a vida é mesmo urgente)
quando você pensa nos livros que leu
no período de tanto a tanto dos anos x e x+1
vem uma notinha do editor ao pé da página
para o período em que ela
- no caso eu -
também esteve lá

os livros emboloram
(vivemos num país úmido)
e caem para outras prateleiras
e se perdem voluntariamente
entre caixas de mudança
ou às vezes desejamos
com toda nossa vontade
que um livro se perca sozinho
e ele se perde como países

tem as teorias que caem também
em desuso porque nascem outras
que combinam melhor com o novo tempo
um pensamento muito capitalista e enciclopédico
um pensamento muito de seu tempo

daí também existe ainda outro risco
que na verdade é o risco mais provável
que eu seja substituída
e isso já é praticamente uma consequência
do meu desaparecimento
uma substituição é atributo
de quem aparece o tempo todo
ou ao menos
muito mais tempo do que eu presumo

que meu medo é um medo justo
e tal como são todos os medos
ele desaparece às vezes
quando me vejo em algum verso
de algum texto seu
e ganho forma

e aí me vem um pensamento
o contrário de medo não é coragem
mas convicção
de que eu ainda existo
de que eu não desapareci
e nesse momento
eu volto a ocupar a fileira
da biblioteca que fica bem diante
dos meus e seus olhos (úmidos)

todo medo é genuinamente
pessoal e intransferível
e por isso a convicção é tão tola
quanto o próprio medo

meu medo
é que eu deixe de ocupar
um espaço e um tempo
como às vezes se deixa
de acreditar na ideia
do amor infinito
uma utopia é sempre baseada na realidade
apesar de tudo o que em contra
já foi dito e feito

o meu medo do desaparecimento parece
(como tudo o que nos move
não pra frente mas pra cima)
sem querer querendo mais um desejo
de mesmo que mínimo, mas não mísero
de vez em quando ainda
te causar um assombro
um arrombamento.

25.4.20

Rachar átomos e depois

Enquanto a maioria das pessoas que ela conhecia seguia pareando-se semanalmente com desconhecidos provindos de aplicativos, apesar do já acumulado número de fiascos encontros, fabricados propositalmente por algoritmos promotores não da formação de amores perfeitos, mas da elevação dos níveis de desconforto na autoimagem e de transtorno de ansiedade para expandir o comércio de cosméticos e fármacos e ampliar a busca de lojas e psiquiatras conveniados, Luisa cicatrizava suas fissuras com maçarico, ao ponto de quase esquecer a diferença entre vinco e abismo, e ia atrás de outros tipos de pequenas mortes – blocos de ficção, doses líquidas de adrenalina e asfaltos amortecidamente socados – para que também não adoecesse do mal do século: o excesso de realidade. Porém, em uma tarde de narizes secos e espargimento de cinzas pelas casas de janelas abertas, Luisa, entediando-se de informações estéreis enquanto lustrava telhados alheios pelas tradicionais redes sociais, acabou se deparando com o que deu a alcunha de possível-vingança-do-mundo, uma reparação doméstica e vulgar aos olhos da comunidade de punhos calejados, mas que a ela lhe serviria como chave de um portão emperrado que ela dava por saltar ou ignorar há tempos ao invés de abrir. E a solução parecia simples, um transcendente óleo, aquele que ela mesma, feita de material divino, produzira involuntariamente em anos passados e em companhias diversas, mas que até a data não tivera chance de estudar a função automática a seu próprio benefício, apesar da farta biblioteca que conservava em um dos cômodos de sua casa. Seria o fim do pacto de silêncio, e, portanto, tal Kaspar Hausen, o que se iniciava ali era uma aprendizagem lenta e paulatina. Já em mãos do suporte necessário para descobrir o que sempre precisou e nunca soubera, assim como objetivam as novas lojas japonesas de miniaturas, acessórios e decoração, de costas ao pano que lhe acomodava todas as noites, almejou um sonho consciente e guiado, conforme fora concedido aos mortais pós-maçã condenatória, ou talvez a história não fosse essa. Com hastas recém-aparadas, iniciou o mergulho ao pré-sal em potencial, com toda a equipe técnica a postos para que a viagem fosse não só executada com sucesso, mas que o trajeto fosse minuciosamente registrado para trabalhos de campo posteriores. O percurso ia com forma, planejado, até que uma turbulência não aguardada fizera com que a torre de controle perdesse o sinal da aeronave e, a partir desse evento, a que se pretendia comissária até o fim da prática tivera que assumir a função de protagonista da missão sem mapa e sem precedentes. Pouco depois da atribuição, Luisa então presenciou o que, segundo pesquisas, era conhecido como chuva de meteoros. Aquela ocorrência que se travava diante de si fizera que o material salgado excedente da fonte, agora já reconhecida como inesgotável, vertesse por seus orifícios oculares, e, sem leituras anteriores que a prevenissem disso, sentiu finalmente estar só, nada mais que só, por uns segundos que duraram incontáveis anos-luz. Desabou, sem que pudesse dominar o impacto. Era a ruína de um corpo. Mas também a descoberta dele.


24.4.20

Esfoliar

jogar o que precisa ralo abaixo
permanecer um pouco mais
com ela debaixo das unhas

mas antes
sentir o chamado
estar em frente à mesa
enfrentando um texto
o que quer que seja
cutucando as espinhas
os folículos esgarçados
a superfície invadida e exausta

chegado o momento
do preparo da pasta
algo cremoso e frio
algo quente e granulado
com fruta e propriedades
que costumam ser consumo
do lado de dentro

lava-se o rosto
se olha nos olhos do espelho
e se encara sem parar
pra pensar na mediocridade da cena
da fracassada exigência de livrar-se

lambuza-se com vera vontade
deixando apenas os buracos da cara de fora
respira-se menos e espera
com um tolo anseio de reparo

volta-se ao texto
já sabendo que não poderá voltar integralmente a ele
não funciona a atenção plena
quando se planeja escrever e fazer
uma limpeza de pele

ao rever-se no espelho
esfrega-se a face com os dedos
uma lenta e violenta leitura em braile
e os grãos esfolam o que parecia
ou realmente era encravado

fecha-se os olhos
respira-se ainda menos

agora sim
certificar-se que dessa vez foi
ralo abaixo
e o espólio debaixo das unhas

sempre o desejo de tomar água
o reflexo interno do arremate
sensação similar a lavar o banheiro
e querer se banhar em seguida

respira-se finalmente fundo
com a firmeza do corpo
de manter o copo ante a gravidade
da cozinha direto à mesa

e, vida nova em folha,
volta-se ao texto

repetir semanalmente
ou cada vez que lembra dela
torna-se um hábito oblíquo
de pensar no que resta.


23.4.20

como se faz

um corpo, quando ainda é homem
movimenta as pernas para elevar-se
nas escadas finais do prédio mais alto
que sua história lhe permitiu conhecer 
enquanto em seu rosto se nota a certeza 
uma das mãos busca o celular no bolso da calça 
encontrando-o no penúltimo lance de degraus momento 
em que os olhos agora nunca tão abertos já se deparam 
com o terraço e avistam a claridade do parapeito
o abismo a faixa de partida
e disca um número de memória aquela
que será a última chamada
de sua vida finalmente 
um de seus ouvidos se atenta
em distinguir o tom da espera
seus pés se encaminham ao destino que resta no instante 
em que um telefone toca em qualquer parte
e passando a porta enxerga
mais alguém ali
fumando
distraído
e o que era pra ser 
podia ainda assim ter sido
mas era outro
o desejo renovado
pedindo um cigarro
e se afogando em prantos
ajuda o homem
que não quis mais ser corpo
faz
sua história
de outra maneira
antes que alguém atenda.

20.4.20

Que escapam

Todo dia normal
eu fico a morder cotovelos
a passar pomada nas orelhas
a fingir que não vejo
a rezar para que isso passe

Nos outros dias
eu bebo muito
e falo mal dela
espremo espinhas no nariz
enquanto espero que isso passe

como se não soubéssemos
como se em silêncio
não implorássemos
para que os sentidos se inundem
e se escapem
como se arrancassem o abrigo
de um morto.

19.4.20

A vida é mesmo

Numa conversa de bar
em plena augusta
sem filtro para minimizar o embate
me lança o inquisidor
uma dúvida e se cala
qual a originalidade do poeta do século um
mais vinte
que toma açaí no café
e googlea sobre o lundu,
o caçanje, a receita de angu
e nem sabe o que é bagé
Como não entro nessa gira
porque nunca joguei capoeira
agradeço humildemente à pergunta difícil
e num gesto de deixa disso
ajeito meus óculos como quem diz
que aceito ser menos índio que ele
e pingo na mandioca frita que dividimos
um pimento que trouxe da estranja
Me sabe mais rico, não posso negar
E ainda que eu sinta em seu riso uma pena
da poetinha
não me enquizilo com meu amigo
poeta é tudo só
e refugiado
também é aquele
que atravessou o istmo
quando o oceano ainda
era um charco.

7.4.20

outra vez

outra vez, despejo
o poema se encharca

hoje eu
soube
a perda da razão
o início de outra

daí pensei
sobre a queda
seus olhos não se despediram
porque se ficasse
seríamos
eu e você
outra vez -
juntos
cuidando dela
- sabemos
sempre soubemos

eu digo
- seu nome
você não se vira
meus olhos abertos pedindo
- o quê
você sabia

que eu não
nunca
deixasse de

estar

não tem
mais
mas deixa
essa música
tocar

um desejo
ou a mão leve
que despeja
sem pedir nada em
troca

um deus encharcado
de lágrimas
me pediu pra fazer
você ir embora

para que eu pudesse
cuidá-la

dessa vez.