27.2.12

Sempre quis ser John Gow

Mas quando nasci
mulher,
brasileira,
no século XX...
meus planos tiveram que ser outros.

24.2.12

A busca.

O filme começa com Aurélia sentada em uma cadeira e diante dela, um homem lhe dá um passe espiritual, com as duas palmas abertas aproximando e afastando de sua cabeça, mas sem tocá-la. A sala lhe parece pequena, há nove pessoas, estão os que dão, os que recebem, e uma senhora em pé em silêncio. Aurélia permanece de olhos abertos, não curiosos nem assustados, não aturdidos nem entediados, olhos de quem não sente o que queria sentir, mas algo sim é possível de sentir. Não precisaria estar em outro lugar que não ali. Depois de um minuto, o gesto do homem em sua frente muda e ele faz sinal para que ela se levante e se encaminhe para fora da sala. Ela não sente que a estão expulsando, mas se dirige a porta com um pouco de pressa.
Do lado externo à sala, a luz é forte, branca, fria, como a de um hospital, e de certa maneira, Aurélia se vê como uma enferma, alguém que foi ali para ser curada ou ao menos, receber uma medicação que funcionasse. Obviamente era um hospital público, não? E o atendimento não é exclusivo como esperava: há fila para tomar a água “purificada”, para entrar na sala de passe, para informações de novas sessões. Gente por todo lado.
Resolve ir embora. E ao sair, sofre uma vontade súbita de fazer o sinal da cruz. Não sabe se faz ou não faz, porque afinal não está saindo de uma igreja católica, evangélica ou qualquer outra dessas. Sai de um lugar liberal, crê, uma casa onde não precisa fazer o sinal da cruz sobre a testa ou sobre o peito para sentir-se abençoada. Acaba não fazendo, ou faz mentalmente. O que poderiam pensar, pensa Aurélia. E segue caminhando pela calçada sem muita graça de ir para casa. Vão me perguntar demais.
A cena corta e Aurélia está numa espécie de centro budista. Digo espécie, porque Aurélia conheceu o lugar como casa de yoga, mas que duas vezes por semana, há um ritual diferente: A aula de transcendência espiritual por meio da meditação. Nome bem comercial para um público bem consumista de bem estar, indaga Aurélia. Mas hoje em dia tudo é passível de. A decoração da sala onde está sentada em posição de “índio” está inteira em tons alaranjados, com exceção do terceiro olho de Buda desenhado na parede, que é roxo. Há alguns espelhos, uns quadros de velhos vestidos de laranja e óculos fundo de garrafa, além claro, da foto de Gandhi. Não poderia faltar. Aurélia, com seus mesmos olhos atentos, escuta o Ohm que sai da boca de um homem que dizia ir a Índia e ao Nirvana a cada três meses. Onde ela poderia chegar? A expressão inspira-expira já lhe tocara o tímpano tantas vezes, que não poderia sequer inspirar e expirar na velocidade que gostaria. Aurélia espera. Conta a quantidade de sapatos que se reunem no canto da sala, o número total de pás dos ventiladores de teto, as pessoas de olhos realmente fechados e aquelas que pareciam estar ali pela primeira vez, como ela, depois entende que talvez por fim, havia logrado o que o professor disse ao começar a prática: deixar o pensamento não se apegar a nada fixo. Dentro de alguns minutos, nada mais que passou por sua matemática estaria no estado em que estava. Ao chegar nessa conclusão, sorri e fecha os olhos ao dizer junto com o coro Namastê.
Próxima cena: Aurélia na chuva. Noite. De guarda-chuva negro, camiseta negra, calça jeans e tênis negros. Olha para o chão enquanto caminha. Seus tênis possuem cadarços largos e claramente molhados. A barra da sua calça também está molhada, e em nenhum momento Aurélia pensa em deixar de olhar para o chão. De repente pára e sua mirada percorre a vitrine ao seu lado direito. Algo lhe chama atenção, mas Aurélia custa um pouco em fixar os olhos num ponto só. Está iluminada, a vitrine, embora a loja esteja fechada e com suas lâmpadas apagadas. Na vitrine, o manequim veste um vestido leve, amarelo e florido. E pende a seu lado, uma placa com o seguinte escrito: Me compre. Sou do seu tamanho e do seu agrado. Combino com suas sandálias lindas e com o verão que está chegando. Aurélia tira seu celular do bolso, saca uma foto da placa, outro do vestido e segue seu caminho, pensando que não tem sandálias que combinam com aquele vestido, que ademais, tem pinta de ser caro.
Cena-sequência: Chegando em casa, Aurélia deixa o guarda-chuva encostado no batente da porta de entrada, abre a porta com sua chave e ali mesmo, tira seus tênis e os deixa no canto interior da casa. O corredor está com suas luzes apagadas e ela segue direto até a última porta à direita, passando por outras duas, uma de cada lado que estão abertas e iguais sem luz. Ao chegar em seu quarto, há um close em seu rosto no momento que acende a luz, já que sua expressão muda, além do tamanho de suas pupilas. Tira do bolso de trás de sua calça um folheto e se dirige à sua cama, lendo-o. Antes de deitar, senta meio de lado e segue lendo, vagarosamente, movendo seus lábios conforme a leitura, e o deixa cair no chão. Ela se deita e a câmera que a acompanhava, passa a movimentar-se em direção ao folheto no piso. Foco: Work Shop - Como ler cartas de tarô; Como jogar búzios; Como fazer amarrações. Ensino a costurar boca de sapo. Mãe Beatriz. Telefone. A câmera abre e já é possível ver Aurélia estirada em sua cama lendo um livro. Ela ri e a câmera começa a aproximar. Ao chegar bem próximo, ela ri novamente com a leitura, e a câmera filma sua mão direita, com as unhas pintadas cada uma de uma cor, segurando o livro. A capa do livro: O livro do desassossego.

22.2.12

só uma lembrancinha

cds riscam
dvds travam
fotos amarelam
bombons açucaram
flores murcham
pelúcias se enchem
de ácaros.

mas você, meu bem
(meu presente)
tem problema não.
você eu já conheci estragado.

Ellen Maria

16.2.12


Busco a un hombre que sepa volar.

15.2.12

Parêntesis Mexicanos

Contando um pouco da vida real, vai:

Comida: como pouco, como muito sanduiche de pão de forma com queijo, como porcaria na rua, a comida daqui é uma droga, estou emagrecendo, quero minha cozinha linda e equipada do Brasil... na cozinha da minha casa mexicana não tem panela, não tem faca, não tem nada.

Vontade de fumar: os mexicanos não fumam... nem se compara com os argentinos que fumam até pelas orelhas em qualquer canto de Buenos Aires.... mas vai entender por quê, vira e mexe, eu penso: "que vontade de fumar". Só não fumo porque... eu não fumo!

Problemas intestinais: ou vou muito ou não vou nunca. Sem mais.

Casa: a dona da casa é uma velha doida que passa o dia pintando, fumando, cantando ou lendo. Outro dia colocou no "repeat" uma só musica por duas horas e ficou cantando junto. Deve ter mais umas 10 pessoas vivendo na casa. Não pode trazer visita de nenhuma maneira. A internet vive caindo. Eu gosto muito da minha cama, mesmo!

Banho: Aqui a água esquenta de duas formas: com o aquecedor solar, se tem sol, ou com o "boiler", ou seja, a gás... que não sei acender o aparelho...! Já tentei, mas não vai. Então, nesses dias frios e de chuva que estamos passando, estou tomando banho de água fria! Percebi que meu cabelo enrola mais assim.

Medo: Por mais que já tenha sido "assaltada", ainda não tenho medo da violência não. Vi umas baratinhas no forno da cozinha (mas é porque aqui NÃO se usa o forno... mesmo! nunca!), mas tudo bem. Acho que tô sem medo por enquanto.

Faculdade: Ou é várzea total, ou a professora é louca e acha que só tem a matéria dela no mundo. Meio termo pra quê? Tenho uma professora que acha que a aula é falar da experiencia dela na Corea (detalhe: a aula é de Espanhol como lingua estrangeira).... tenho outra que é tão velha que esquece que já nos passou 50 páginas de leitura e manda mais 50.... tenho outra que pede para investigarmos o conceito de educação de 20 caras diferentes.... e tenho outra que ainda não sei bem qual é a dela... mas é várzea.

Universitários: Tem coreanos saindo por todos os lados, não sei que convênio é esse, mas só tem gente da Corea nos corredores. Dá pra encontrar também uns franceses, uns alemães e o resto tem cara de latino mesmo... grande parte mexicano, ainda que nem todos são realmente de Guadalajara.... são gentis quando falamos com eles, mas a maioria não tem cara de simpático.

Amigos: Alguns. A "Melba", que é mexicana, cursa uma matéria comigo e é demais de gente boa... com quem conto os podres da vida sem problemas. A "Melisa", que é colombiana de Bogotá, minha irmãzinha linda, que cuido e protejo. A "Mari" que é minha amiga mexicana de internet, a gente nunca consegue se encontrar. O "Andres" argentino, companheiro de tomar mate e conversar por horas. O "Ernesto" tipico mexicano, que é meu parceiro para qualquer problema sério, esse já é amigo de longa data. O "Pachu" que é espanhol, que viveu em Portugal, e sempre nos encontramos para treinar o português.

Cidade: É linda, é pequena (comparado a São Paulo né), dá pra andar numa boa, todo mundo tem bicicleta, quase sempre está um sol lindo com um céu azul. Tem uma quantidade absurda de semaforos, a cidade cheira a comida (a margarina derretida e a carne ruim, na verdade), e tem sempre um rádio ligado tocando "música de banda" (aqueles grupos de 20 pessoas... meio mariachi).

Desejos: ter uma bicicleta. que a internet funcione sempre. que pare de chover para eu poder lavar roupa. que o dinheiro da minha bolsa de estudos caia ainda essa semana na minha conta.

14.2.12

Uma vida feita de cebolas

Obrigada por uma vida não perfeita. Obrigada por me fazer ter dor de barriga cada vez que vou dormir na casa de um cara que estou afim. Por fazer a pintura da unha descascar em menos de um dia. Por travar a internet no momento que recebo um email importante. Por fazer a luz acabar durante o shampoo ou depois que acendi a última vela para o santo. Por fazer dos dias de sol os primeiros depois que todas as roupas estão limpas e fazer os dias de chuva quando já não há mais camisetas limpas. Por me deixar dramatizar todos os fracassos enquanto me olham com cara de idiota. Obrigada por sobrar dinheiro quando não tem nada de legal para se fazer e faltar moedas quando o mundo inteiro está de festa, há liquidações por toda a cidade e todas as melhores bandas vieram tocar logo aqui. Pelo temporal sem guarda-chuva. Pelos pés cansados e muito caminho pela frente. Pela dor de dente na praia. Obrigada pela faca afiada no meu dedo e pela faca sem ponta quando eu preciso cortar uma carne. Pelas tantas ligações por engano. Obrigada por me deixar carente sempre que não devo, sempre que quem está ao lado odeia sentimentalismos ou é um completo estranho. Por tantos desencontros, foras e atrasos. Por me dar dor nas costas no dia seguinte daquela massagem gostosa, porém desnecessária. Por me dar dor de cabeça e cólica no dia da prova, sem atestado médico. Obrigada por me fazer inspirada de pé no metrô lotado, e quando eu chego em casa, esquecer o poema completamente. Por me fazer chorar cortando cebolas. Por me dar fome na hora da missa. Obrigada por me fazer sofrer tão pouco.

Ellen Maria

Quem avisa, amigo

Nenhuma caixa de fósforos vem sozinha.
Ela vem carregada de acompanhantes, de ajudantes, de guarda-costas, de serviços de quarto, de amigos, de fuck-friends, de mendigos, de família, de descendentes, de antecessores, de acessores, de promoters, de beijos de carnaval, de estranhos, de conhecidos, de companheiros de partido, de inimigos de Estado, de primos distantes, de flanelinhas, de cozinheiros, de porta-bandeira e abre-alas, de beija-flores, de tanta história, de tanto conto rasgado, de tanta pólvora riscada, de tanta carga positiva e negativa e planos e fracasso e passado e futuro, que quando a abrimos: temos que tomar cuidado.
Toda caixa de fósforos é uma caixa de explosivos.

Ellen Maria

10.2.12

Lição verde

Se tabaco fosse bom
não tinha cor de merda
Mas até a merda serve
para alguma coisa.

Ellen Maria

Hoje eu não quero estar aqui




9.2.12

O outro

Quando ele
muito modesto
pensou que ela
só podia pensar
nele
se equivocou.

Ellen Maria

A felicidade está onde a pomos.

presente

para Andres

E a menina que acreditava 
que o romance estava em outro lugar, 
mas nunca com ela, 
ganhou duas pequenas flores, 
dessas de arbusto, 
que nascem mesmo sem expectadores, 
sem amantes 
alados para lhes beijar, 
e resolveu pensar de outro modo.

Ellen Maria

1.2.12

dica


me escondo perto do pique
para se acaso você não me achar