24.2.12

A busca.

O filme começa com Aurélia sentada em uma cadeira e diante dela, um homem lhe dá um passe espiritual, com as duas palmas abertas aproximando e afastando de sua cabeça, mas sem tocá-la. A sala lhe parece pequena, há nove pessoas, estão os que dão, os que recebem, e uma senhora em pé em silêncio. Aurélia permanece de olhos abertos, não curiosos nem assustados, não aturdidos nem entediados, olhos de quem não sente o que queria sentir, mas algo sim é possível de sentir. Não precisaria estar em outro lugar que não ali. Depois de um minuto, o gesto do homem em sua frente muda e ele faz sinal para que ela se levante e se encaminhe para fora da sala. Ela não sente que a estão expulsando, mas se dirige a porta com um pouco de pressa.
Do lado externo à sala, a luz é forte, branca, fria, como a de um hospital, e de certa maneira, Aurélia se vê como uma enferma, alguém que foi ali para ser curada ou ao menos, receber uma medicação que funcionasse. Obviamente era um hospital público, não? E o atendimento não é exclusivo como esperava: há fila para tomar a água “purificada”, para entrar na sala de passe, para informações de novas sessões. Gente por todo lado.
Resolve ir embora. E ao sair, sofre uma vontade súbita de fazer o sinal da cruz. Não sabe se faz ou não faz, porque afinal não está saindo de uma igreja católica, evangélica ou qualquer outra dessas. Sai de um lugar liberal, crê, uma casa onde não precisa fazer o sinal da cruz sobre a testa ou sobre o peito para sentir-se abençoada. Acaba não fazendo, ou faz mentalmente. O que poderiam pensar, pensa Aurélia. E segue caminhando pela calçada sem muita graça de ir para casa. Vão me perguntar demais.
A cena corta e Aurélia está numa espécie de centro budista. Digo espécie, porque Aurélia conheceu o lugar como casa de yoga, mas que duas vezes por semana, há um ritual diferente: A aula de transcendência espiritual por meio da meditação. Nome bem comercial para um público bem consumista de bem estar, indaga Aurélia. Mas hoje em dia tudo é passível de. A decoração da sala onde está sentada em posição de “índio” está inteira em tons alaranjados, com exceção do terceiro olho de Buda desenhado na parede, que é roxo. Há alguns espelhos, uns quadros de velhos vestidos de laranja e óculos fundo de garrafa, além claro, da foto de Gandhi. Não poderia faltar. Aurélia, com seus mesmos olhos atentos, escuta o Ohm que sai da boca de um homem que dizia ir a Índia e ao Nirvana a cada três meses. Onde ela poderia chegar? A expressão inspira-expira já lhe tocara o tímpano tantas vezes, que não poderia sequer inspirar e expirar na velocidade que gostaria. Aurélia espera. Conta a quantidade de sapatos que se reunem no canto da sala, o número total de pás dos ventiladores de teto, as pessoas de olhos realmente fechados e aquelas que pareciam estar ali pela primeira vez, como ela, depois entende que talvez por fim, havia logrado o que o professor disse ao começar a prática: deixar o pensamento não se apegar a nada fixo. Dentro de alguns minutos, nada mais que passou por sua matemática estaria no estado em que estava. Ao chegar nessa conclusão, sorri e fecha os olhos ao dizer junto com o coro Namastê.
Próxima cena: Aurélia na chuva. Noite. De guarda-chuva negro, camiseta negra, calça jeans e tênis negros. Olha para o chão enquanto caminha. Seus tênis possuem cadarços largos e claramente molhados. A barra da sua calça também está molhada, e em nenhum momento Aurélia pensa em deixar de olhar para o chão. De repente pára e sua mirada percorre a vitrine ao seu lado direito. Algo lhe chama atenção, mas Aurélia custa um pouco em fixar os olhos num ponto só. Está iluminada, a vitrine, embora a loja esteja fechada e com suas lâmpadas apagadas. Na vitrine, o manequim veste um vestido leve, amarelo e florido. E pende a seu lado, uma placa com o seguinte escrito: Me compre. Sou do seu tamanho e do seu agrado. Combino com suas sandálias lindas e com o verão que está chegando. Aurélia tira seu celular do bolso, saca uma foto da placa, outro do vestido e segue seu caminho, pensando que não tem sandálias que combinam com aquele vestido, que ademais, tem pinta de ser caro.
Cena-sequência: Chegando em casa, Aurélia deixa o guarda-chuva encostado no batente da porta de entrada, abre a porta com sua chave e ali mesmo, tira seus tênis e os deixa no canto interior da casa. O corredor está com suas luzes apagadas e ela segue direto até a última porta à direita, passando por outras duas, uma de cada lado que estão abertas e iguais sem luz. Ao chegar em seu quarto, há um close em seu rosto no momento que acende a luz, já que sua expressão muda, além do tamanho de suas pupilas. Tira do bolso de trás de sua calça um folheto e se dirige à sua cama, lendo-o. Antes de deitar, senta meio de lado e segue lendo, vagarosamente, movendo seus lábios conforme a leitura, e o deixa cair no chão. Ela se deita e a câmera que a acompanhava, passa a movimentar-se em direção ao folheto no piso. Foco: Work Shop - Como ler cartas de tarô; Como jogar búzios; Como fazer amarrações. Ensino a costurar boca de sapo. Mãe Beatriz. Telefone. A câmera abre e já é possível ver Aurélia estirada em sua cama lendo um livro. Ela ri e a câmera começa a aproximar. Ao chegar bem próximo, ela ri novamente com a leitura, e a câmera filma sua mão direita, com as unhas pintadas cada uma de uma cor, segurando o livro. A capa do livro: O livro do desassossego.

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