21.5.17

(…) haveria algo como o silêncio, ou como a gagueira, ou como o grito, algo que escorreria sob as redundâncias e as informações, que escorraçaria a linguagem, e que apesar disso seria ouvido. Falar, mesmo quando se fala de si, é sempre tomar o lugar de alguém, no lugar de quem se pretende falar e a quem se recusa o direito de falar. O sindicalista Séguy é boca aberta quando se trata de transmitir ordens e palavras de ordem. Mas a mulher com a criança morta também é boca aberta. Uma imagem se faz representar por um som, como um operário por seu sindicalista. Um som toma o poder sobre uma série de imagens. Então, como chegar a falar sem dar ordens, sem pretender representar algo ou alguém, como conseguir fazer falar aqueles que não têm esse direito, e devolver aos sons seu valor de luta contra o poder? Sem dúvida é isso, estar na própria língua como um estrangeiro, traçar para a linguagem uma espécie de linha de fuga.(conversações, p.56) (…) Às vezes se age como se as pessoas não pudessem se exprimir. Mas de fato, elas não param de se exprimir. Os casais malditos são aqueles em que a mulher não pode estar distraída ou cansada sem que o homem diga: “O que você tem? Fala … “, e o homem sem que a mulher … , etc. O rádio, a televisão fizeram o casal transbordar, dispersaram-no por toda parte, e estamos trespassados de palavras inúteis, de uma quantidade demente de falas e imagens. A besteira nunca é muda nem cega. De modo que o problema não é mais fazer com que as pessoas se exprimam, mas arranjar-lhes vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais elas teriam, enfim, algo a dizer. As forças repressivas não impedem as pessoas de se exprimir, ao contrário, elas as forçam a se exprimir. Suavidade de não ter nada a dizer, direito de não ter nada a dizer; pois é a condição para que se forme algo raro ou rarefeito, que merecesse um pouco ser dito. Do que se morre atualmente não é de interferências, mas de proposições que não têm o menor interesse. Ora, o que chamamos de sentido de uma proposição é o interesse que ela apresenta, não existe outra definição para o sentido. Ele equivale exatamente à novidade de uma proposição. Podemos escutar as pessoas durante horas: sem interesse … Por isso é tão difícil discutir ‘ por isso não cabe discutir, nunca. Não se vai dizer a alguém: “o que você diz não tem o menor interesse”. Pode-se dizer: “está errado”. Mas o que alguém diz nunca está errado, não é que esteja errado, é que é bobagem ou não tem importância alguma. É que isso já foi dito mil vezes. As noções de importância, de necessidade, de interesse são mil vezes mais determinantes que a noção de verdade. De modo algum porque elas a substituem, mas porque medem a verdade do que digo. Mesmo em matemática: Poincaré dizia que muitas teorias matemáticas não têm importância alguma, não interessam. Não dizia que eram falsas, era pior) Se se trata de reconstituir transcendências ou universais, de restabelecer um sujeito de reflexão portador de direitos, ou de instaurar uma intersubjetividade de comunicação, não estamos diante de uma grande invenção filosófica. Quer se fundar um “consenso”, mas o consenso é uma regra ideal de opinião que nada tem a ver com a filosofia. Dir-se-ia que se trata aí de uma filosofia-propaganda .(…) Toda criação tem um valor e um teor políticos. Mas o problema é que ela se concilia mal com os circuitos de informação e de comunicação, que são circuitos inteiramente preparados e degenerados de antemão. Todas as formas de criação, inclusive a eventual criação na televisão, encontram aqui seu inimigo comum. É sempre uma questão cerebral: o cérebro é a face oculta de todos os circuitos, que podem fazer triunfar os reflexos condicionados mais rudimentares, tanto quanto dar uma oportunidade a traçados mais criativos, a ligações menos “prováveis”. O cérebro é um volume espaço-temporal: cabe à arte traçar nele novos caminhos atuais. A filosofia não é comunicativa, assim como não é contemplativa nem reflexiva: ela é, por natureza, criadora ou mesmo revolucionária, uma vez que não pára de criar novos conceitos. A única condição é que eles tenham uma necessidade, mas também uma estranheza, e eles as têm na medida em que respondem a verdadeiros problemas (…) os professores pagam suas viagens com palavras, experiências, colóquios, mesas-redondas, falar, sempre falar. Os intelectuais têm uma cultura formidável, eles têm opinião sobre tudo. Eu não sou um intelectual, porque não tenho cultura disponível, nenhuma reserva. O que sei, eu o sei apenas para as necessidades de um trabalho atual, e se volto ao tema vários anos depois preciso reaprender tudo. É muito agradável não ter opinião nem idéia sobre tal ou qual assunto. Não sofremos de falta de comunicação, mas ao contrário, sofremos com todas as forças que nos obrigam a nos exprimir quando não temos grande coisa a dizer. Viajar é ir dizer alguma coisa em outro lugar, e voltar para dizer alguma coisa aqui. A menos que não se volte, que se permaneça por lá. Por isso sou pouco inclinado às viagens; é preciso não se mexer demais para não espantar os devires.(…) me parece interessante nas vidas, os buracos que elas comportam, as lacunas, por vezes dramáticas, mas às vezes nem isso. Catalepsias ou uma espécie de sonambulismo por vários anos, é isto que a maioria das vidas comporta. É talvez nesses buracos que se faz o movimento. A questão é justamente como fazer o movimento, como perfurar a parede para não dar mais cabeçadas. Talvez não se mexendo demais, não falando demais: evitar os falsos movimentos, residir onde não há mais memória. Escreve-se em função de um povo por vir e que ainda não tem linguagem. Criar não é comunicar mas resistir.(…) O que para mim substitui a reflexão é o construcionismo. E o que substitui a comunicação é uma espécie de expressionismo.(…) E quais verticalidades, as que nos dão algo para contemplar, ou então as que nos fazem refletir ou comunicar? Ou não será preciso justamente suprimir toda e qualquer verticalidade como transcendência, e nos deitarmos sobre a terra e abraçá-la, sem olhar, sem reflexão, privados de comunicação? E temos ainda conosco o amigo ou já estamos sós, Eu=Eu, ou somos amantes, ou ainda outra coisa, e quais os riscos de trair a si mesmo, de ser traído ou de trair? Não há um momento em que é preciso desconfiar até do amigo?(…) Creio que à filosofia não falta público nem propagação, mas ela é como que um estado clandestino do pensamento, um estado nômade. A única comunicação que poderíamos desejar, como perfeitamente adaptada ao mundo moderno, é o modelo de Adorno, a garrafa atirada ao mar, ou o modelo nietzscheano, a flecha lançada por um pensador e recolhida por um outro.(…) Talvez a fala, a comunicação, estejam apodrecidas. Estão inteiramente penetradas pelo dinheiro: não por acidente, mas por natureza. É preciso um desvio da fala. Criar foi sempre coisa distinta de comunicar. O importante talvez venha a ser criar vacúolos de não-comunicação, interruptores, para escapar ao controle.(…) É difícil “se explicar” – uma entrevista, um diálogo, uma conversa. A maior parte do tempo, quando me colocam uma questão, mesmo que ela me interesse, percebo que não tenho estritamente nada a dizer. As questões são fabricadas, como outra coisa qualquer. Se não deixam que você fabrique suas questões, com elementos vindos de toda parte, de qualquer lugar, se as colocam a você, não tem muito o que dizer. A arte de construir um problema é muito importante: inventa-se um problema, uma posição de problema, antes de se encontrar a solução. Nada disso acontece em uma entrevista, em uma conversa, em uma discussão. Nem mesmo a reflexão de uma, duas ou mais pessoas basta. E muito menos a reflexão. Com as objeções é ainda pior. Cada vez que me fazem uma objeção, tenho vontade de dizer: “Está certo, está certo, passemos a outra coisa.” As objeções nunca levaram a nada. O mesmo acontece quando me colocam uma questão geral. O objetivo não é responder a questões, é sair delas. Muitas pessoas pensam que somente repisando a questão é que se pode sair delas (…) é preciso falar com, escrever com. Com o mundo, com uma porção de mundo, com pessoas. De modo algum uma conversa, mas uma conspiração, um choque de amor ou de ódio. Não há juízo algum na simpatia, mas conveniências entre corpos de toda natureza. “Todas as sutis simpatias da alma inumerável, do mais amargo ódio ao amor mais apaixonado.” É isso agenciar: estar no meio,sobre a linha de encontro de um mundo interior e de um mundo exterior. Estar no meio: “O essencial é tornar-se perfeitamente inútil, se absorver na corrente comum, tornar-se novamente peixe e não bancar os monstros (…)
GDCP