10.6.13

Querida eu

Querida eu, aos cinco anos,
Você acabou de aprender a ler. Parabéns! Nunca esqueça de agradecer a paciência da tia Cláudia e da tia Rosângela do jardim de infância.
Sua antipatia preliminar e desconfiança com qualquer ser vivo faz parte de você mesma: procure se aceitar, porque mesmo depois de grande, você vai continuar encontrando muita gente que te ache um porre por causa disso. Mas tudo bem... ajuda a selecionar seus poucos amigos na vida.
Você tem um sobrenome estranho e que é, ao mesmo tempo, o mais comum dos sobrenomes (Silva), mas não se apegue a ele: aos seis, você vai perdê-lo.
Não fique triste: você vai ganhar outro mais bonito (Vasconcellos), que vem junto com um pai novo, presente e apegado. O processo de adoção vai acontecer na sexta-feira que antecede o Dia dos pais, por ironia da vida, e você vai atuar como uma criança linda e meiga. Tente lembrar disso.
Seu novo pai vai usar barba a vida toda e vai te tratar não só como filha, mas como amiga, depois de seus dezoito anos. Seja atenciosa com ele.
As vezes, você vai fazer um esforço para tentar lembrar do velho pai (e só vai lembrar de seu bigode); vai ficar magoada e se sentir rejeitada pelo primeiro homem da sua vida; vai se preocupar se pode ter alguma doença genética vinda dele ou de sua família desconhecida... tente não ligar muito pra isso. Quase todas as doenças têm tratamento e cura. Quanto à ilusão de rejeição do seu pai biológico, ela te fará uma pessoa mais dura com todos os homens que passarem por você. Muitos deles vão reclamar, e alguns te chamarão de coração de pedra, mas uns poucos vão ver o quão especial você é, por essa mesma razão.
Você vai chegar aos dezoito anos e ainda estará na escola. Vai repetir o último ano de uma maneira ou de outra: brigas na escola, perseguição da professora, notas baixas em matemática, seu novo namorado, viagem de formatura antes da hora.... Então, aproveite e relaxe. Serão dois terceiros anos bem aproveitados. Só não coma tanta pizza de calabresa que vai te fazer mal.
Terá alguns namorados e vários casos não sérios. Será traída logo de cara, trocada pela melhor amiga bem rapidamente, escutará vários foras e desculpas esfarrapadas, presenciará brochadas e ejaculadas precoces, levará algumas porradas, e se sentirá às vezes a culpada de todos os males. Mas nada vai fazer você deixar de ser ansiosa para se apaixonar novamente. Será cada vez mais exigente, cada vez mais consciente, mas cada vez mais vai amar intensamente.
Ah! Claro... será poeta. Então todo drama ganha uma lágrima, toda tragédia ganha um poema. E pela mesma razão, toda sua prosa vira poética. Desista de uma vez de tentar ser jornalista. Você vai escrever, mas não será notícia. Publicará algumas crônicas em antologias, mas seu negócio mesmo é poesia. Vai demorar pra se lançar em livros só seus, mas calma lá, que sua hora vai chegar.
Você conhecerá muitas partes do mundo. Grande parte por mérito de seu estudo. Mas não se vanglorie! Você não é das mais inteligentes. Pena muito para aprender qualquer coisa, e várias vezes vai desistir na metade por causa disso (violino, tênis, escultura, equação da circunferência...), mas, ao contrário da galera, se alguma coisa realmente te prende, você se firma nela.
Aliás, "meta" é praticamente seu terceiro sobrenome. Nascida no mundo capitalista, ainda que numa família não abastada, você vai perseguir suas metas diárias e não se conformará se passar mais de três dias sem cumpri-las. Terá mania de organização e certa obsessão com calendários e horários. Nada doentio, mas certamente, irritante para os que te observam de longe e de perto. Serão elas que de alguma maneira te ajudarão a cumprir prazos e a conseguir bolsas de estudo. Só te peço que deixe um pouco de espaço para o improviso. Ainda que não o utilize quase nunca, você também é boa nisso.
Peço que você tenha cuidado com o excesso de bebidas alcoólicas (do segundo ao quarto ano da faculdade) e com todos os argentinos que ver pela frente (dos vinte e um aos vinte e cinco). E que meça as palavras com as meninas do ginásio e do colegial, porque elas podem fazer da sua vida um inferno, e, principalmente, que meça as palavras com a sua mãe, nos três primeiros anos da faculdade. Se não, você fará feridas na pessoa que mais te ama nesse mundo. De resto, você vai tirar de letra. Ou melhor, de letras!
Cuide-se bem e ande sem pressa.
Um abraço (porque beijo você só vai gostar de receber depois dos dezesseis),
Eu, aos vinte e seis.


Ellen Maria

Nenhum comentário:

Postar um comentário