26.6.13

Movimento

Antes dela chegar, todos já sabem que virá. Porque antes dela se solidificar, seu perfume já lhes assoma e lhes presentea: paz; como um sorvete, que se chupa suave e de olhos fechados; como um cheiro morno de café com leite; uma brisa de campo outonal e também de terra quente. Assim, podem esperar por ela apenas vagamente surpresos, olhando pela porta, espiando pela janela até que...
Ela se apresenta tímida, vai cumprimentando a todos devagarinho, dedicando atenção a um, depois a outro. Todos sorriem com sua entrada, que floresce até aqueles mais escondidos, no canto da sala, do sótão e do porão; a amam, porque sentem sede de amor.
Com o passar do tempo, o sorriso apolíneo dela dá lugar à música guardada, a risa solta. O ambiente festivo libera outros perfumes que não só o dela, suores e sabores se mesclam liberadamente. Tudo o que era sólido e difícil começa a se dissolver sem dificuldade. Uma sobreabundância de fluidos, líquidos, ainda bem vindos. Ela parece estar na sua forma mais espontânea, genuína.
Até que essa sensação lânguida bruscamente se transforma em ameaça. Os olhos não se acomodam, e ela, ainda que bela, mostra seu lado bruto, masculino, até violento. Seus gestos são mais angulosos, sua voz passa a ser mais estridente; sua presença constante, aberta e ampla converte a normalidade em desconforto avergonhado aos convidados. Embora indecisos se derrotados ou compreensivos, fica impossível disfarçar a expressão de fatiga, por ela permanecer ali. Todos sabem não há como expulsá-la: é a natureza berrando aos quatro ventos, aquela energia contida pungente posta pra fora... mas é que ela provoca urgência a qualquer um que a vê!
Pouco a pouco, vai se acalmando, trazendo um alivio generalizado. Ao mesmo tempo, no fundo de cada um deles, há um sentimento sufocado por, ela, dessa vez, não ter cometido nenhum ato verdadeiramente potente; por dessa vez ela não ter trazido nenhum perigo real a eles, nenhum corte profundo. Afinal, ela, nesse momento pequena, bem poderia: ébria, é capaz de ser cruel até com a criatura que mais ama, se assim desejar. Mas esse segredo cambaleante segue aspirado. Se alguém falasse, desabaria. E ela está tão linda, recuada e primitiva.
Por fim, resolve se despedir. Seu perfume novamente exala sensibilidade e ninguém se sente habilitado em julgá-la; a observam ir, com ingênua saudade. Na verdade, sentirão envelhecidamente sua falta, e ansiarão incondicionalmente a próxima festa. Porque sabem que sem ela tudo seria seco, irremediavelmente seco, sério, falho, mudo.
Ela era essencial para que todos pudessem mentir, se exercitar, sentir fome e ser conscientes de si. Ela, doce, amarga, ácida e salgada, era a chuva que todos queriam ser.

Ellen Maria

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