7.8.17

Carta a Otto

"Meu velho, como se torna difícil explicar as coisas quando a liberdade instala em nós seu reino de incertezas.
Agora, eu preciso distinguir cada céu, conseguir de cada um a intimidade singular, de cada vento devo arrancar o segredo, a confidência, de cada alegria é preciso que eu estabeleça os limites, organizando as paisagens que a compõem, que lembranças me vivem na alma, que tonalidade de luz me cerca, que momentos de tédio ou ansiedade precederam o prazer de colecionar conhecimentos. Agora, irmão, tudo é diferente e nada se repete. E não sei que irremediável fatalidade de conhecer, de distinguir, de aprender a tudo amar ou tudo odiar em sua fase distinta me leva para frente, sempre mais para frente até a incerta fronteira em que o pudor desmente a intimidade das coisas, obrigando as palavras a se dirigirem para os domínios da poesia.
Escute irmão: sou de índole fragmentada e dispersa. Quando não me engole a tragédia, me apaixono a todo instante: uma lembrança, um rosto, uma faixa de areia branca suavizando a visão de edifícios e quintais. A entrega, entretanto, jamais humanizou meus amores. Eu me apaixono pelas possibilidades, isto é, as nuanças, as entregas arrependidas, indecisas ou inconscientes, isso que promete negando ou nega prometendo, tudo isso me encanta e reclama.
Ora, frequentemente acontece que eu tome um ar de imparticipação e ausência. As criaturas costumam acusar em mim o frio, o impassível, o árido. Devo aceitar isso na extensão total de seus compromissos? Devo explicar que atrás do impassível eu me apodero das coisas com voluptuosidade, com paixão? E que, de certo modo, me comprometo e vou ao extremo de tudo quanto me convoca, criando para minha vida um sem-número de derrotas singulares? Olhe, irmão, o que me interessa nas coisas é o que elas poderiam ser. O que me atrai nas criaturas é a disponibilidade, essa linda e trágica espera incessante, esse constante vigiar das tentações, como se torcêssemos pela circunstância, pela pessoa, pelo demônio que viesse (que sempre parece vir) nos arrancar dos trilhos para as cambalhotas da vida. Você há de ter observado, meu velho, um rosto, um olhar disciplinado e intimidado por séculos de civilização burguesa, você há de ter notado que nesses rostos costuma brilhar de vez em quando um anseio esquisito, uma luz que é bem uma sede de pecado, de desconhecido, de desastre. Instantes em que se revela em nós o pagão – o selvagem, o homem que deseja perder a própria vida e não ganhar. Vinte séculos de cristianismo não extinguiram em nós o gosto ácido do desprendimento, o amor impensado pelas coisas do mundo: sol, frutos, fêmea subjugada sobre a relva. Bem, irmão, esses momentos são tudo pra mim.
Quando conheço uma criatura qualquer, meu caro, fico a espiá-la de meu canto, brinco de provocá-la a ver até onde vai e até onde poderia ir. A contemplação do limite em que essa criatura se pertence e deixa de se pertencer, o limiar entre a unidade e a dispersão, a crista que a separa do pecado, a linha divisória que distingo entre o domínio de si mesma e mil possibilidades de ser diferente, enfim, essa fabulosa região limítrofe é o que poderosamente me afasta de pensar em mim mesmo, me afasta de sofrer. Conversando com mulheres me obstino em saber até que ponto me pertencem, ou permanecem ou me odeiam. Quanto de entrega existe entre mim e as pessoas que me rodeiam? Que porcentagens extraio das almas que me escutam? Que espécie de vida viveríamos se ousássemos mais um pouco? Talvez essa lucidez minha seja triste. Mas, mermão, a lucidez é também paixão, e a mais irremediável que eu conheço."
Paulo Mendes Campos
(a Otto - Lara Rezende)