(ou o dia em que se converteu em si mesma).
Acordou
às cinco e meia, tomou banho, escovou os dentes debaixo da ducha e deixou a
pasta dental escorrer pelo seu corpo junto com a água, como faz todos os dias
pela manhã. Ela não tem muitas atitudes sensuais no seu cotidiano, mas essa
visão de ver a espuma branca escorrer pelo seu corpo enquanto a água quente lhe
aquece, lhe parece definitivamente sexy e lhe ajuda a acordar.
Enquanto
tomava seus dois copos de água e comia uma maçã às seis e dez da manhã, ligou o
computador para ler seu horóscopo e ver se tinha algum e-mail importante.
Ninguém lhe havia escrito desde a noite anterior, e seu horóscopo lhe dizia que
até seu aniversário, que datava para dentro de dois meses, ela passaria por um
período de reclusão e meditação, ideal para por ideias e prioridades em ordem,
além de seguir sua intuição e concretizar objetivos. Pensou no seu mestrado e
em conseguir mais alunos particulares. Pensou que precisava comprar uma bota
nova e ver seu pai com mais frequência. Já estava vestida para o dia. Sóbria,
se viu, examinando-se no espelho. Que adulta séria, disse para si mesma. Decidiu
sair às seis e meia de casa, mesmo sabendo que era muito cedo ainda.
Tomou
o ônibus em menos de cinco minutos, e surpreendentemente, estava vazio. Havia
lugar para sentar e se sentou, ainda que não estivesse cansada. Relaxou. Pensou
que como estava adiantada, poderia não descer na estação de trem mais próxima,
no qual tomava o trem sempre cheio, mas ir até a estação seguinte, já que o
ônibus também passaria por lá. Além disso, da segunda estação, sai um trem
vazio a cada cinco minutos... poderia ir sentada até o trabalho, coisa que
nunca acontecia durante a semana. Só tinha um porém de tomar aquela decisão: a
outra estação de trem é a mesma que seu ex namorado desce para ir trabalhar. Ex
esse que não era visto desde julho do ano anterior. Ex esse que pediu distância
eterna. Eis que... havia que pensar.
Raciocínio
lógico: o horário dele entrar no trabalho era às sete. Por consequência, ele
teria que passar pela estação ao menos cinco minutos antes, para bater o cartão
no horário correto. Ela, de dentro do ônibus, ainda em condições de descer na
primeira estação de trem, olha para seu relógio de pulso. Pelo cálculo,
chegaria à segunda estação de trem as sete e dez. Portanto, não encontraria com
ele e ainda conseguiria ir sentada, chegando com folga em seu trabalho. Ok,
decisão tomada.
Ela
chegou à segunda estação de trem às sete e nove. O coração acelerou um pouco.
Entrou na estação olhando para todos os caras que saíam dela, passou o cartão,
girou a catraca, se dirigiu à escada rolante. Pé direito para subir. Olhou para
cima, para o fim da escada rolante, muita gente, e para a escada em sentido
contrário, a que descia. E lá no topo estava ele. Seu ex, mexendo no celular. Resolveu
olhar para o outro lado até dar tempo dele passar por ela, em direção oposta.
Passou, ela sentiu, ela continuou subindo, e ele seguiu descendo. Agora já
podia acompanhá-lo com seus olhos, a velha jaqueta de couro caramelo, o cabelo
raspado, costas largas. Ela saiu da escada e foi caminhando lentamente pelo
corredor até chegar à plataforma. Sentou esperando o trem chegar.
Tremia.
Suava. Ofegava. Não se sentia muito bem. Não sentia nada. Estava emocionada? Não
sabia. Ainda o amava? Ainda o queria? Não. Já não era nada? Não sabia nada. Mas estava
angustiada. O trem chegou, ela entrou e novamente sentou. E pensou em mandar
uma mensagem para sua melhor amiga para avisar que o havia visto. Desistiu.
Tocou seu celular. Mensagem da melhor amiga pedindo a senha do seu facebook. De
certo, queria procurar o ex dela também. Passou-lhe a senha, mas não escreveu
sobre o que acabara de passar. Resolveu prestar atenção nas pessoas de pé.
Chegou
à estação em que descia para ir trabalhar. Ainda lhe faltava meia hora até a
hora de aparecer na recepção da empresa e se anunciar. Sentou, em um banco na
plataforma, e resolveu ler. Precisava fugir. Precisava parar de pensar que o
viu... O viu! Ironicamente, o livro que levava na bolsa se chamava Realidade. Leu e sublinhou frases por
meia hora e foi trabalhar: como sempre, centrada, com humor e planejamento. Seu
aluno particular, um executivo estrangeiro, ao final, lhe agradeceu a aula em
portunhol e lhe desejou um bom fim de semana.
Ela
esperou o elevador chegar pensando que diabos faria no sábado e no domingo, além
do costumeiro estudar e ver filmes em casa. Sentiu que envelhecia a cada andar
que o elevador baixava. Tomou o trem outra vez e foi até o centro. Precisava
comprar um livro num sebo para seu mestrado. Perto do coração selvagem.
Aproveitou
para passar na loja de um e noventa e nove. Fazia tempo que queria comprar uma nova
colher de pau. A sua já tinha pegado gosto de molho de tomate e brigadeiro.
Além de nunca parecer limpa o suficiente. Que pensamento de dona de casa,
achava. Na loja, tocava Roberto Carlos, o seu mais novo sucesso. Cantou a
música inteirinha junto com a atendente do caixa. Sentiu-se pobre e brega. De
fato, era.
Olhou
vitrines. Botas. Bolsas. Perfumes. Roupas. Decidiu entrar em uma loja onde
sempre encontrava vestidos baratos nos fundos. E outra vez, seguindo a
intuição, os encontrou. O mais lindo e barato não tinha seu número. Resolveu
experimentar um número maior, mas já sabia que não o levaria. Depois do vestido,
largo e grande, olhou-se no espelho da cabine, só de calcinha e sutiã. Sentiu
que se parecia à sua mãe. Vestiu sua roupa. Camisa preta, calça jeans e bota
cano curto. Cinto. Camisa para dentro da calça. Olhou-se no espelho outra vez.
Sim, ela era a imagem da sua mãe. Tentou lembrar-se desde quando começou a usar
a camisa pra dentro da calça.
Recebeu,
por celular, o convite de almoçar com três amigos. Aceitou, para recusar o que
tinha pensado para sua tarde solitária: ler e se deprimir. Com seus amigos,
iria rir, comer bem, e de certo, tomar uma cerveja. Inclusive ia contar que viu
o ex, mentindo que não sentiu nada, que tudo já passou há muito tempo, que
haveria de ocorrer? E como previa, se divertiu e passou a tarde e parte da
noite com eles, falou bobagens, contou velhas histórias, relembrou anedotas. Um
de seus amigos, o mais antigo, resolveu acompanhá-la até sua casa. Assim,
jantariam juntos, e ele poderia dormir no sofá, como outras vezes. Ela sentiu
que ele não a queria deixar sozinha.
Pediram
pizza. Os dois sabores que ela gosta. Comeram em casa. Ela tomou vinho, um que
já o tinha aberto há uma semana, para tomar enquanto via filmes de chorar. Ele
tomou cerveja. Ela estranhou ter visita em casa em uma sexta à noite. Estranhou
estar em casa com a televisão desligada. Ele disse que era melhor ouvir música
e colocou um cd de trilhas sonoras. Ela ligou a TV mesmo assim, mas deixou no
mudo. Passava um programa sobre tecnologia e coisas virtuais. Jantaram conversando
e, depois, cada um ligou seu computador. Em dez minutos, ele desligou o seu,
deitou no sofá e dormiu. Ela buscou seu
melhor edredom e o cobriu. Apagou a luz da sala para que ele dormisse melhor. Sentiu
que essas eram atitudes muito maternas.
Resolveu
ir para seu quarto, depois de escovar os dentes. Soltou o cabelo. Tirou seu
relógio de pulso. Meia noite e meia. Tirou suas botas. Sua camisa e sua calça.
Tirou tudo de dentro da bolsa. Carteira, óculos de grau, uma bala de framboesa,
celular, guarda-chuva, casaquinho, agenda e caneta. Uma lixa de unha no bolso
de fora. Colocou uma calça de moletom cinza, uma camiseta de manga comprida
cinza, um par cinza de meias. Pela última vez no dia se olhou no espelho. Já
era hora de dormir, e se reconheceu.
Ellen Maria
Ellen Maria
Adorei o relato. Quando parte de nossas vidas se desfaz a solavancos, nasce ali um certo vazio, que se não preenchido,cria-se a tendencia de maximizar sentimentos. Não basta preencher o tempo com a materialidade dos afazeres do dia, necessário preencher o vazio com o sentimentos que o solavanco levou.Ame muito.São Paulo é a cidade mais populosa do Brasil, possui mais 11.244000 habitantes, não é preciso repetir amores. Como pode se olhar no espelho e se ver como a imagem de sua mãe. Gorda??!!
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