20.4.13

Retrato de Ellen Maria por Dezenove de Abril


(ou o dia em que se converteu em si mesma).

Acordou às cinco e meia, tomou banho, escovou os dentes debaixo da ducha e deixou a pasta dental escorrer pelo seu corpo junto com a água, como faz todos os dias pela manhã. Ela não tem muitas atitudes sensuais no seu cotidiano, mas essa visão de ver a espuma branca escorrer pelo seu corpo enquanto a água quente lhe aquece, lhe parece definitivamente sexy e lhe ajuda a acordar.
Enquanto tomava seus dois copos de água e comia uma maçã às seis e dez da manhã, ligou o computador para ler seu horóscopo e ver se tinha algum e-mail importante. Ninguém lhe havia escrito desde a noite anterior, e seu horóscopo lhe dizia que até seu aniversário, que datava para dentro de dois meses, ela passaria por um período de reclusão e meditação, ideal para por ideias e prioridades em ordem, além de seguir sua intuição e concretizar objetivos. Pensou no seu mestrado e em conseguir mais alunos particulares. Pensou que precisava comprar uma bota nova e ver seu pai com mais frequência. Já estava vestida para o dia. Sóbria, se viu, examinando-se no espelho. Que adulta séria, disse para si mesma. Decidiu sair às seis e meia de casa, mesmo sabendo que era muito cedo ainda.
Tomou o ônibus em menos de cinco minutos, e surpreendentemente, estava vazio. Havia lugar para sentar e se sentou, ainda que não estivesse cansada. Relaxou. Pensou que como estava adiantada, poderia não descer na estação de trem mais próxima, no qual tomava o trem sempre cheio, mas ir até a estação seguinte, já que o ônibus também passaria por lá. Além disso, da segunda estação, sai um trem vazio a cada cinco minutos... poderia ir sentada até o trabalho, coisa que nunca acontecia durante a semana. Só tinha um porém de tomar aquela decisão: a outra estação de trem é a mesma que seu ex namorado desce para ir trabalhar. Ex esse que não era visto desde julho do ano anterior. Ex esse que pediu distância eterna. Eis que... havia que pensar.
Raciocínio lógico: o horário dele entrar no trabalho era às sete. Por consequência, ele teria que passar pela estação ao menos cinco minutos antes, para bater o cartão no horário correto. Ela, de dentro do ônibus, ainda em condições de descer na primeira estação de trem, olha para seu relógio de pulso. Pelo cálculo, chegaria à segunda estação de trem as sete e dez. Portanto, não encontraria com ele e ainda conseguiria ir sentada, chegando com folga em seu trabalho. Ok, decisão tomada.
Ela chegou à segunda estação de trem às sete e nove. O coração acelerou um pouco. Entrou na estação olhando para todos os caras que saíam dela, passou o cartão, girou a catraca, se dirigiu à escada rolante. Pé direito para subir. Olhou para cima, para o fim da escada rolante, muita gente, e para a escada em sentido contrário, a que descia. E lá no topo estava ele. Seu ex, mexendo no celular. Resolveu olhar para o outro lado até dar tempo dele passar por ela, em direção oposta. Passou, ela sentiu, ela continuou subindo, e ele seguiu descendo. Agora já podia acompanhá-lo com seus olhos, a velha jaqueta de couro caramelo, o cabelo raspado, costas largas. Ela saiu da escada e foi caminhando lentamente pelo corredor até chegar à plataforma. Sentou esperando o trem chegar.
Tremia. Suava. Ofegava. Não se sentia muito bem. Não sentia nada. Estava emocionada? Não sabia. Ainda o amava? Ainda o queria? Não. Já não era nada? Não sabia nada. Mas estava angustiada. O trem chegou, ela entrou e novamente sentou. E pensou em mandar uma mensagem para sua melhor amiga para avisar que o havia visto. Desistiu. Tocou seu celular. Mensagem da melhor amiga pedindo a senha do seu facebook. De certo, queria procurar o ex dela também. Passou-lhe a senha, mas não escreveu sobre o que acabara de passar. Resolveu prestar atenção nas pessoas de pé.
Chegou à estação em que descia para ir trabalhar. Ainda lhe faltava meia hora até a hora de aparecer na recepção da empresa e se anunciar. Sentou, em um banco na plataforma, e resolveu ler. Precisava fugir. Precisava parar de pensar que o viu... O viu! Ironicamente, o livro que levava na bolsa se chamava Realidade. Leu e sublinhou frases por meia hora e foi trabalhar: como sempre, centrada, com humor e planejamento. Seu aluno particular, um executivo estrangeiro, ao final, lhe agradeceu a aula em portunhol e lhe desejou um bom fim de semana.
Ela esperou o elevador chegar pensando que diabos faria no sábado e no domingo, além do costumeiro estudar e ver filmes em casa. Sentiu que envelhecia a cada andar que o elevador baixava. Tomou o trem outra vez e foi até o centro. Precisava comprar um livro num sebo para seu mestrado. Perto do coração selvagem.
Aproveitou para passar na loja de um e noventa e nove. Fazia tempo que queria comprar uma nova colher de pau. A sua já tinha pegado gosto de molho de tomate e brigadeiro. Além de nunca parecer limpa o suficiente. Que pensamento de dona de casa, achava. Na loja, tocava Roberto Carlos, o seu mais novo sucesso. Cantou a música inteirinha junto com a atendente do caixa. Sentiu-se pobre e brega. De fato, era.
Olhou vitrines. Botas. Bolsas. Perfumes. Roupas. Decidiu entrar em uma loja onde sempre encontrava vestidos baratos nos fundos. E outra vez, seguindo a intuição, os encontrou. O mais lindo e barato não tinha seu número. Resolveu experimentar um número maior, mas já sabia que não o levaria. Depois do vestido, largo e grande, olhou-se no espelho da cabine, só de calcinha e sutiã. Sentiu que se parecia à sua mãe. Vestiu sua roupa. Camisa preta, calça jeans e bota cano curto. Cinto. Camisa para dentro da calça. Olhou-se no espelho outra vez. Sim, ela era a imagem da sua mãe. Tentou lembrar-se desde quando começou a usar a camisa pra dentro da calça.
Recebeu, por celular, o convite de almoçar com três amigos. Aceitou, para recusar o que tinha pensado para sua tarde solitária: ler e se deprimir. Com seus amigos, iria rir, comer bem, e de certo, tomar uma cerveja. Inclusive ia contar que viu o ex, mentindo que não sentiu nada, que tudo já passou há muito tempo, que haveria de ocorrer? E como previa, se divertiu e passou a tarde e parte da noite com eles, falou bobagens, contou velhas histórias, relembrou anedotas. Um de seus amigos, o mais antigo, resolveu acompanhá-la até sua casa. Assim, jantariam juntos, e ele poderia dormir no sofá, como outras vezes. Ela sentiu que ele não a queria deixar sozinha.
Pediram pizza. Os dois sabores que ela gosta. Comeram em casa. Ela tomou vinho, um que já o tinha aberto há uma semana, para tomar enquanto via filmes de chorar. Ele tomou cerveja. Ela estranhou ter visita em casa em uma sexta à noite. Estranhou estar em casa com a televisão desligada. Ele disse que era melhor ouvir música e colocou um cd de trilhas sonoras. Ela ligou a TV mesmo assim, mas deixou no mudo. Passava um programa sobre tecnologia e coisas virtuais. Jantaram conversando e, depois, cada um ligou seu computador. Em dez minutos, ele desligou o seu, deitou no sofá e dormiu.  Ela buscou seu melhor edredom e o cobriu. Apagou a luz da sala para que ele dormisse melhor. Sentiu que essas eram atitudes muito maternas.
Resolveu ir para seu quarto, depois de escovar os dentes. Soltou o cabelo. Tirou seu relógio de pulso. Meia noite e meia. Tirou suas botas. Sua camisa e sua calça. Tirou tudo de dentro da bolsa. Carteira, óculos de grau, uma bala de framboesa, celular, guarda-chuva, casaquinho, agenda e caneta. Uma lixa de unha no bolso de fora. Colocou uma calça de moletom cinza, uma camiseta de manga comprida cinza, um par cinza de meias. Pela última vez no dia se olhou no espelho. Já era hora de dormir, e se reconheceu. 

Ellen Maria

Um comentário:

  1. Adorei o relato. Quando parte de nossas vidas se desfaz a solavancos, nasce ali um certo vazio, que se não preenchido,cria-se a tendencia de maximizar sentimentos. Não basta preencher o tempo com a materialidade dos afazeres do dia, necessário preencher o vazio com o sentimentos que o solavanco levou.Ame muito.São Paulo é a cidade mais populosa do Brasil, possui mais 11.244000 habitantes, não é preciso repetir amores. Como pode se olhar no espelho e se ver como a imagem de sua mãe. Gorda??!!

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